Todo encasacado e munido por uma lanterna, um pai acorda a filha pequena no meio da madrugada. Falando baixinho na penumbra da casa de dois andares, ele pergunta a ela sobre o cantil, as meias extras e o kit de sobrevivência.
— E o Raphael? — acrescenta.
Não temos tempo de saber quem é Raphael. Com a esposa na direção, o carro da família parte em alta velocidade. Ao fundo, ouve-se uma sirene, da polícia ou de ambulância. À beira de um rio, o veículo estaciona, e então o sujeito, com o celular na mão, diz:
— Dezessete minutos e 53 segundos até sair da ilha. Dois minutos a menos do que na última vez!
É aí que começamos a entender a proposta de O Declínio (Jusqu'au Déclin), filme canadense que, a exemplo do espanhol O Poço, estreou na Netflix em um momento bem a calhar – ou não, dependendo do seu ponto de vista e do seu estado de espírito.
Aquela fuga noturna tratava-se de uma simulação, um ensaio para o apocalipse. Na próxima vez, se a guriazinha esquecesse da tartaruga, Raphael "já era", ficaria para trás.
A preparação para o pior continua no dia e na cena seguinte. Antoine (interpretado por Guillaume Laurin) e sua filha estão assistindo a um youtuber cinquentão, Alain (Réal Bossé), cujo lema é: "Para viver, é preciso sobreviver". No vídeo, ele diz que as mercearias de Montreal têm estoque para três dias.
— Ou seja, após três dias, se os caminhões não vierem, não haverá nada. Todos com fome, um caos. Haverá briga — prevê Alain. — Por isso, neste curso vamos aprender a conservar comida (no caso, arroz, para durar 20 anos!). Isso fará diferença. Porque a paz que conhecemos está por um fio. O governo pode entrar em colapso. Pode haver um surto de H1N1 intenso ou um desastre natural.
Ou uma avalanche de refugiados climáticos, como previsto para 2050 segundo o noticiário no rádio enquanto Antoine e filha estocam arroz. Ou uma pandemia de coronavírus.
Não estávamos preparados, como vimos. E mesmo os países que puderam se preparar um pouco mais enfrentam desafios, como vemos. Porque há coisas que escapam do controle e porque o ser humano é imprevisível. Cada um reage de um jeito ao medo, à privação, a uma ameaça.
É o que Antoine e o espectador descobrirão no campo de treinamento comandado por Alain, em uma experiência tipo os programas Survivor e No Limite, mas trocando o calor dos trópicos por gélidas paisagens do Canadá. Na chamada Base Autônoma Durável de Sobrevivência, o velho youtuber armou-se para o pior — incluindo, nas suas palavras, "o ataque de 5 mil árabes". Há painéis de energia solar, combustível, lenha seca, gerador, galinheiro, cabras, estufa, macieiras e bordo para fazer xarope. Há também armas e armadilhas.
— É questão de tempo para a merda bater no ventilador. Quando isso acontecer, não quero que minha vida mude. Quero me alimentar e quero continuar tocando meu piano — diz.
Repare como Alain dá rosto a um perfil exposto pela covid-19: o do egoísta. Ele parece querer ensinar os outros, mas no fundo preocupa-se apenas com si próprio.
No acampamento, Antoine terá a companhia de mais pessoas, cada uma com sua personalidade, cada personagem espelhando um tanto de nós mesmos em meio ao distanciamento social. Existem os agressivos e os afobados, mas também os empáticos e os solidários. A sociedade vai se gerindo, ainda que precise de um Estado (Alain) que diga o que pode e o que não pode. Quando um acidente acontece — quando uma pandemia explode —, como será nosso comportamento?
Máscaras civilizatórias vão cair, instintos vão dominar as ações. O grupo racha — uns querem o isolamento horizontal, outros, o vertical, poderíamos dizer. No enxuto filme (dura apenas uma hora e 23 minutos), o diretor estreante Patrice Laliberté, coautor do roteiro, transforma a situação em um thriller brutal e sangrento, com pelo menos duas cenas que podem fazer cair o queixo. Ainda que em sua segunda metade O Declínio invista mais na ação do que na reflexão, tudo faz ecoar o que ouvimos na primeira metade. Aliás, um dos discursos de Alain é evocado — "Quando olho para vocês, vejo cidadãos lúcidos, com um ideal comum. E um ideal, para se tornar real, exige um trabalho árduo, de todos nós, todos juntos". A outra frase guia — do filme e para a vida — é de Antoine: "Você sempre tem escolha".