A aventura escapista — em um duplo sentido — tem seu valor. Ainda mais em tempos como os nossos.
Acuados pelo coronavírus, cumprindo o distanciamento social ou enfrentando o risco de contaminação por causa do trabalho, preocupados com os riscos econômicos ou a crise política estimulada pelo próprio presidente Jair Bolsonaro, precisamos, de vez em quando, assistir a um filme que não exija muito do nosso intelecto. Um filme que nos banhe de adrenalina. Um filme que, durante aquele par de horas, tenha um protagonista carismático, em quem a gente deposite nossa torcida enquanto ele se embrenha em uma missão quase impossível.
É como se projetássemos nele a fé e a esperança de que, no final, tudo vai dar certo. Nessa fantasia, tomamos como nossa a busca, ainda que turva, de redenção pelo personagem principal. Sob a guarda da ficção, nos permitimos a violência abominável na vida real, mas libertadora e até fascinante quando de mentirinha. Tipo um videogame, podemos inclusive matar — e o cruzamento desse limite moral é favorecido pela abundância de inimigos sem rosto, que se multiplicam como vírus que devemos eliminar para preservar a vida.
Todos esses elementos estão presentes em Resgate (Extraction), filme que a Netflix lançou recentemente. O protagonista carismático é o australiano Chris Hemsworth, o Thor da franquia Marvel, que entrou no barco (sendo, inclusive, um dos produtores) graças à presença de dois nomes envolvidos na saga cinematográfica dos Vingadores.
O primeiro deles é Joe Russo, que codirigiu com seu irmão, Anthony, Guerra Infinita (2018) e Ultimato (2019), além de Capitão América: Soldado Invernal e Capitão América: Guerra Civil, e que assina o roteiro, baseado em uma história em quadrinhos — Ciudad — escrita pelos manos e por Ande Parks. O segundo é Sam Hargrave, coordenador de dublês em uma série de títulos, como as duas partes de Jogos Vorazes: A Esperança, Esquadrão Suicida, Atômica e Deadpool 2, além das duas últimas aventuras dos Vingadores.
Resgate transporta a ambientação da Ciudad del Este, no Paraguai, para a Índia e o Bangladesh ("dublado", por questões de segurança, pelo país vizinho e pela Tailândia). Hemsworth interpreta Tyler Rake, um mercenário mais ou menos do bem e que afoga na bebida um drama particular. Como se nada mais na vida lhe atraísse, abraça o perigo, seja pulando de um enorme penhasco para uma lagoa na Austrália, seja aceitando trabalhos como salvar o filho adolescente de um traficante de drogas indiano, sequestrado a mando de um barão do crime da apinhada Dhaka, a capital bengali, sexta cidade com maior densidade populacional do mundo.
Esse garoto chama-se Ovi e é encarnado por Rudhraksh Jaiswal, um jovem ator de Bollywood, a indústria do cinema da Índia. Aliás, eis um dos charmes do filme: o emprego de um elenco majoritariamente local, com muitos diálogos falados no idioma local (inclusive na versão dublada). Têm papel de destaque também os indianos Pankaj Tripathi (que faz o pai de Ovi), Randeep Hooda (Saju, seu braço-direito), Priyanshu Painyuli (Amir Asif, o bandido bengali) e a iraniana Golshifteh Farahani (uma aliada de Tyler Rake).
Um tema conecta vários desses personagens: a paternidade. Uns precisam lidar com a ausência da figura paterna, outros carregam um trauma devastador, e há quem se revele um tigre na defesa de seu filhote. É o respiro dramático, digamos, de um filme acertadamente calcado na ação quase ininterrupta.
Para resgatar Ovi, Tyler viverá uma odisseia. Enfrenta militares corruptos, snipers e gangues adolescentes (os "Goonies do inferno", como ele ironiza). Vira alvo de perseguições de carro, golpes de faca e traições. Graças à combinação entre a experiência do diretor Sam Hargrave e do porte físico de Chris Hemsworth, as cenas impressionam pela intensidade e pela proximidade. Parece que estamos ali, nas ruas de Dhaka, nas escadarias de um prédio abandonado ou em uma ponte que se transforma em campo de batalha. As coreografias são tão boas nos combates corpo a corpo, que a edição é mínima, para dar um efeito mais realista. Quase se pode sentir o cheiro do suor.