Se você está com saudade do futebol – já nem lembro mais quando foi o último jogo do Grêmio –, há uma minissérie nova da Netflix que pode aplacá-la. Mas não espere assistir a lances de craque ou gols espetaculares. Aliás, prepare-se para ver pouco da bola rolando: The English Game é menos sobre o que o esporte apresenta e mais sobre o que representa.
Não poderia ser diferente, afinal, a trama foi coescrita por Julian Fellowes, o oscarizado roteirista do filme Assassinato em Gosford Park (2001) e criador do popular seriado Downton Abbey (2010-2015). Nessas duas obras e também em The English Game, é a luta de classes que está no centro das atenções.
Novamente, Fellowes visita o passado da Inglaterra para contrastar a aristocracia e os trabalhadores – a diferença é que agora o mergulho é mais profundo: o ano de Gosford Park é 1932, Downton Abbey vai de 1912 a 1926, e os seis episódios da minissérie se passam na virada da década de 1870 para a de 1880.
Também a exemplo de suas duas predecessoras, The English Game ramifica a narrativa em núcleos de personagens que por ventura se cruzam. Muitos deles são baseados em figuras reais, mas, em nome da ficção e do conflito dramático, houve significativas licenças poéticas.
Os dois protagonistas ilustram o antagonismo social. De um lado, temos Arthur Kinnaird (interpretado por Edward Holcroft), filho de um banqueiro de Londres e o capitão do Old Etonians, um time da elite que dominava o futebol à época. Do outro, está Fergus Suter (Kevin Guthrie), filho de um bêbado de Glasgow, na Escócia, e cérebro do Darwen, a equipe de uma fábrica de tecelagem para o qual foi contratado, literalmente, por debaixo dos panos – nos primórdios, o profissionalismo era proibido. O esporte tinha de ser amador, o que dava vantagem aos ricos, pois dinheiro é tempo: podiam se dar ao luxo de treinar sem terem trabalhado 10 horas ao dia.
Enquanto sonham com o título da Copa da Inglaterra, tanto Fergus quanto Arthur precisam lidar com a sombra paterna. O escocês teve de ser adulto mais cedo, porque quer livrar a mãe e as irmãs do pai violento. O inglês vê Lorde Kinnaird menosprezar o futebol, tido como "coisa de meninos" – por consequência, não enxerga o filho como o adulto que é.
Esse espelhamento é um dos trunfos da minissérie, que evita o maniqueísmo. Nem o riquinho é um demônio, nem o pobre é santo. E, em torno deles, gravitam outros tantos personagens que não se resumem à primeira camada. Há um – legítimo – cartola, por exemplo, que surge como uma espécie de vilão, mas depois descobriremos seus dramas e sua nobreza.
Como em Downton Abbey, em que as mulheres exercem o poder de fato enquanto os homens brincam de realeza e nobreza, The English Game lança um olhar sensível e empoderador para as personagens femininas enquanto os masculinos chutavam a bola. Alma (Charlotte Hope), a esposa de Arthur, critica o elitismo do esporte e engaja-se em causas sociais. A serviçal Martha (Niamh Walsh), uma mãe solteira, atua como uma espécie de consciência para Fergus e não se vende.
Você já deve ter reparado que o futebol em si é praticamente um coadjuvante, um pano de fundo. Não faltam cenas de jogo – que, por um lado, mostram um esporte bastante diferente do que conhecemos, desde os uniformes (as chuteiras eram botas, e o Old Etonians usava calças compridas) até aspectos táticos (Fergus buscou ensinar a troca de passes para homens que corriam em bloco atrás da bola), passando pelos riscos médicos (um carrinho maldoso poderia significar a amputação de uma perna!); por outro, nem os atores, nem os diretores parecem ter muita intimidade com a pelota, o que contribui para imagens confusas e lances fajutos.
São no entorno e nos bastidores do futebol que recai o foco. Tal qual Downton Abbey se permitia retratar o passado com um olhar mais contemporâneo, The English Game reflete nos anos 1870 e 1880 temas de épocas posteriores. Aparecem até mesmo hooligans, os torcedores violentos que durante décadas do século 20 causaram uma tremenda dor de cabeça na Inglaterra.
Com menos firulas do que poderiam existir – alguns diálogos soam didáticos demais para quem já é mais familiarizado com o assunto –, Julian Fellowes examina o futebol do ponto de vista sociológico. A bola é um meio de ascensão, e as equipes proletárias encarnam o orgulho e a esperança de suas cidadezinhas – daí que trocar de camiseta é um ato imperdoável de deslealdade.
Os personagens simbolizam dilemas eternos: o amor a um clube não bota comida na mesa, mas ser bem remunerado significa ser mercenário? Há espaço para o craque e para o estrelismo em um elenco operário? Supertimes, que, em tese, visam ser populares não acabam elitizando o esporte, minando as chances dos mais fracos?