A sequência de abertura de Downton Abbey serve como uma analogia do processo de aclimatação ao filme pelo espectador que não assistiu ao seriado britânico, que teve seis temporadas exibidas entre 2010 e 2015 (a Rosane Tremea, minha colega de Redação, revê pelo menos um pedacinho de episódio por dia e escreveu um comentário sob a perspectiva de fã). Acompanhamos a longa jornada de uma carta enviada pela realeza à enorme casa de campo da família Crawley em Yorkshire, na Inglaterra. Ela passa de mãos em mãos, muitas mãos, pega um trem, um carro e enfim chega ao destinatário. Essa viagem nos transporta para uma época em que as informações e as transformações corriam muito mais devagar do que hoje, estamos de volta a um tempo em que as fronteiras sociais não eram porosas, ainda que próximas: ricos e pobres ocupam a mesma propriedade, mas os primeiros flanam por espaços amplos com figurinos suntuosos, e os outros, com os uniformes da criadagem, apertam-se em uma cozinha e em corredores de cores pálidas. As trocas constantes de portadores da missiva e de nomes nos créditos alertam sobre a quantidade de meandros da nobreza e, sobretudo, de personagens com os quais teremos de nos familiarizar: serão 40, 50, talvez 60!
A boa notícia é que, decorridos alguns minutos em que podemos ficar perdidos em meio à saraivada de diálogos – todos, felizmente, carregados pela fina ironia e pelo delicioso sotaque dos britânicos –, as coisas se assentam. Downton está em polvorosa porque o rei George V e a rainha Mary farão uma visita que inclui um jantar e o pernoite ("Não vamos parar de trocar de roupas!", diz, em um tom de lamento que não esconde o orgulho, uma das aristocratas).
Paralelamente, vão se desenhando outras tramas, outros dramas. Há um viajante misterioso, o capitão Chetwode, preocupado com o republicanismo irlandês do pai viúvo Tom Branson, um motorista que conseguiu cruzar a barreira ao casar com Sybil, uma das três filhas de Robert Crawley (Hugh Bonneville), o lorde Grantham. A matriarca Violet – interpretada por Maggie Smith, sempre um prazer de ver e ouvir (pontuará o filme com tiradas do tipo "Sarcasmo é a pior forma de inteligência" e "Eu nunca discuto, eu explico") – precisa lidar com uma prima, Maud, que parece inclinada a privilegiar a dama de companhia como herdeira. O mordomo Barrow, indignado por não poder servir a corte real _ que trará seu próprio staff –, afasta-se de Downton e resolve tentar dar vazão a sua sexualidade reprimida: ele é um homossexual, em um período (1927) que isso ainda era considerado crime na Inglaterra (só deixou de ser 40 anos depois).
Com ritmo e elegância, o diretor Michael Engler e o roteirista Julian Fellowes (criador do seriado e vencedor do Oscar pelo script de Assassinato em Gosford Park, de 2001) costuram essas linhas narrativas, sem estendê-las em demasia: decidido um conflito, o personagem logo é envolvido no próximo. E muitos desses conflitos são atemporais – alguns até soam bastante contemporâneos. O mais evidente, claro, é o de classes, tratado em Downton Abbey com uma nostalgia que deve torcer narizes de quem entende o trabalho como a mera exploração da mão de obra: no castelo dos Crawley, os patrões são amistosos, e os serviçais "sabem o seu lugar" e têm orgulho de suas atividades – para demonstrar isso, um dos empregados, Mr. Molesley (Kevin Doyle, cativante em seu desajeito), chega a romper regras de conduta.
Por outro lado, não há nada de saudosista na forma como o filme retrata as personagens femininas. Pelo contrário. Enquanto os homens brincam de realeza e nobreza, quem exerce de fato o poder são as mulheres. É a dama de companhia Anna (Joanne Froggatt) que encabeça o plano de combate à equipe trazida por George V, com a participação decisiva da governanta, Mrs. Hughes (Phyllis Logan) e da cozinheira, Mrs. Patmore (Lesley Nicol). É a rainha Mary (Geraldine James) que persuade o marido a retirar um convite irrecusável mas desprovido de empatia. É a auxiliar Daisy (Sophie McShera) quem tem a coragem de questionar o status quo. É Lady Mary (Michelle Dockery) quem sai na chuva para fazer as coisas acontecerem.