Tanto pela carreira do diretor quanto pela qualidade do filme, a Warner cometeu um crime, ou no mínimo um grande pecado, ao lançar praticamente apenas no streaming Jurado Nº 2 (Juror #2, 2024). Nos Estados Unidos, o novo e talvez último trabalho de Clint Eastwood estreou somente em 35 salas de cinema (existem mais de 35 mil no país), menos em homenagem ao veterano cineasta californiano do que para habilitar o título a premiações; no Brasil, veio direto para as plataformas de aluguel digital, e a partir de sexta-feira (20) estará disponível no menu da Max.
Eastwood, 94 anos, ganhou quatro vezes o Oscar, sempre em dobradinha. Pelo faroeste Os Imperdoáveis (1992), venceu nas categorias de melhor filme, como produtor, e de melhor direção. Pelo drama de boxe Menina de Ouro (2004), faturou de novo os troféus de filme e direção. Por esses dois títulos, também foi indicado ao Oscar de melhor ator.
Outros três filmes do cineasta concorreram ao principal prêmio da Academia de Hollywood: o policial Sobre Meninos e Lobos (2003) e os dramas de guerra Cartas de Iwo Jima (2006) e Sniper Americano (2014). O currículo de obras inesquecíveis inclui outro faroeste, O Estranho Sem Nome (1973), a cinebiografia do saxofonista Charlie Parker, Bird (1988), e o romance As Pontes de Madison (1995). E vários dos títulos em que Eastwood foi apenas ator se tornaram imortais, como a trilogia spaghetti western rodada por Sergio Leone na década de 1960 e Perseguidor Implacável (1971), que deu vida ao personagem Dirty Harry.
Se Jurado Nº 2 for mesmo seu canto do cisne, trata-se de uma despedida muito coerente com a sua carreira. A filmografia de Eastwood é marcada por obras sobre os dilemas da justiça e do próprio sistema judicial dos EUA, sobre o que é justo na vida, sobre ética, virtude e moral. Também está povoada por personagens ambíguos — um velho bandido pode ser mais íntegro do que o xerife, um ladrão pode ser mais honesto do que o presidente, um reacionário ex-militar pode virar herói de uma comunidade de imigrantes. Nessa lista, estão, por exemplo, os filmes do detetive Dirty Harry, Os Imperdoáveis, Poder Absoluto (1997), Crime Verdadeiro (1999), Sobre Meninos e Lobos, Menina de Ouro, Gran Torino (2008), A Troca (2008), Sully: O Herói do Rio Hudson (2016) e O Caso Richard Jewell (2019).
Em Jurado Nº 2, no qual dirige um roteiro escrito pelo estreante Jonathan Abrams, Eastwood exibe outra de suas marcas: vai direto ao ponto, sem muitas firulas. Mesmo que recorra bastante a flashbacks e por vezes invista no humor, há uma fluidez e uma sobriedade na narrativa que tornam ainda mais implacável o debate proposto.
Como o nome indica, Jurado Nº 2 tem como principal cenário um tribunal de Justiça do Estado da Geórgia. Lá, a promotora Faith Killebrew, vivida pela ótima atriz Toni Collette, quer transformar um julgamento em um trampolim para sua eleição como procuradora. O caso é de um suposto feminicídio: um cara chamado James Sythe (Gabriel Basso, protagonista da série O Agente Noturno) que foi visto brigando com a namorada em um bar é acusado de ter matado a moça em uma estrada e jogado o corpo em um riacho. Essa personagem, Kendall Carter, é encarnada por Francesca Fisher-Eastwood, filha do cineasta. Chris Messina interpreta o advogado de defesa, Resnick, crente na inocência de seu cliente. A montagem assinada por Joel Cox e David S. Cox, colaboradores contumazes de Clint Eastwood, é brilhante no jogo de espelhar ou confrontar os discursos de Faith e de Resnick.
Mas o personagem principal do filme, como o título também indica, é outro. Trata-se de Justin Kemp, um jornalista medíocre que está para ser pai pela primeira vez. Ele queria ficar ao lado da esposa no último trimestre de uma gravidez de risco, mas acaba recrutado para compor o júri do caso Kendall Carter, como o tal jurado número 2. Ao seu lado, estão coadjuvantes intepretados por J.K. Simmons e Leslie Bibb, entre outros, que trazem à mesa diferentes perspectivas e prejulgamentos.
O protagonista é representado pelo ator inglês Nicholas Hoult, que completou 35 anos no dia 7 de dezembro. Revelado na comédia romântica Um Grande Garoto (2002), na qual fazia o filho de Toni Collette, presente na franquia X-Men, na pele de Hank McCoy e no pelo da Fera, e indicado a prêmios como o czar Pedro III na série The Great (2020-2023), ele tem aqui uma de suas melhores atuações. Enxergamos o sujeito de 1m90cm que vive em uma constante corda bamba, tentando equilibrar o que é decente com o que é conveniente. O que nós faríamos no lugar dele?
Não demora para que Clint Eastwood apresente e explique o baita dilema moral encarado por Justin, que pode ser decisivo para o veredito dos 12 jurados. Mas prefiro deixar que o espectador descubra por si próprio, como aconteceu comigo. Minha ignorância em relação a pontos importantes da trama me manteve absolutamente envolvido por este filmaço que vai além do drama de tribunal: além de discutir o chamado viés de confirmação, é uma reflexão sobre como lidamos com a consciência pesada.
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