Neste 23 de dezembro, é celebrado o aniversário de 50 anos de Perseguidor Implacável (Dirty Harry), filme dirigido por Don Siegel e estrelado por Clint Eastwood que se tornou um símbolo da onda de violência que marcou o cinema em 1971.
Além do policial que deu início a uma pentalogia completada por Magnum 44 (1973), Sem Medo da Morte (1976), Impacto Fulminante (1983) e Dirty Harry na Lista Negra (1988)— os cinco títulos estão disponíveis na plataforma de streaming HBO Max —, estrearam em 1971 Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick, Operação França, de William Friedkin, Sob o Domínio do Medo, de Sam Peckinpah, e Shaft, de Gordon Parks.
Isso não aconteceu por coincidência, tampouco foi algo exclusivo daquela temporada cinematográfica. Havia um caldo cultural que vinha sendo cozinhado por um longo tempo e que alimentou os cinco diretores estadunidenses. Mesmo que Kubrick morasse em Londres e se baseasse em um romance escrito em 1962 pelo inglês Anthony Burgess, mesmo que Peckinpah tenha ambientado seu filme na Inglaterra, essas obras parecem espelhos do agonizante fim do chamado sonho americano.
Assassinatos de JFK, Malcolm X, Martin Luther King e Sharon Tate engrossaram caldo cultural que resultou em onda de violência.
A primeira estocada — e por isso a mais traumática, vide os 17 minutos da canção Murder Most Foul, que Bob Dylan lançou em 2020 — foi dada em 1963: o assassinato do presidente John F. Kennedy. Orador carismático e inspirador ("Não pergunte o que seu país pode fazer por você, mas o que você pode fazer por seu país"), JFK era um símbolo tanto do progressismo, na política interna (prometia na educação e combater a discriminação racial, por exemplo), quanto do expansionismo/imperialismo, na externa (ordenou a invasão da Baía dos Porcos, em Cuba, e apoiou um golpe no Iraque, por exemplo) — o que se traduz até no seu desejo de que os Estados Unidos liderassem a corrida espacial.
Os baques foram se acumulando. Os assassinatos de Malcolm X (1965), de Martin Luther King (1968) e de Fred Hampton (1968, reconstituído no filme Judas e o Messias Negro), três dos principais líderes do movimento pelos direitos civis dos negros. O assassinato de outro Kennedy, Robert, o Bobby, irmão de John e provável candidato do Partido Democrata à presidência, morto em 1968. O massacre de My Lai, também em 1968, capítulo mais escabroso das tropas norte-americanas na Guerra do Vietnã. A brutal repressão policial a protestos em Chicago, ainda em 1968, contra o conflito e o ultrajante julgamento que se sucedeu (ambos reencenados no filme Os 7 de Chicago) — em 1970, quatro estudantes da Universidade Estadual de Kent, em Ohio, acabaram mortos a tiros pela Guarda Nacional, durante uma manifestação contrária à invasão do Camboja, vizinho do Vietnã. O terror instaurado entre o fim dos anos 1960 e o início dos 1970 pelo Zodíaco, o assassino serial cuja identidade até hoje nunca foi descoberta. A chocante morte a facadas da atriz Sharon Tate, que estava grávida de nove meses, por integrantes da seita de Charles Manson, em agosto de 1969 (reimaginada, com outro desfecho, em Era uma Vez em Hollywood, de Quentin Tarantino). Os episódios de violência do festival de rock de Altamont, na Califórnia, em dezembro de 1969 — o que era para ser "o Woodstock do Oeste" terminou definido como o evento que decretou o epílogo do sonho hippie de paz e amor.
Todo esse sangue, todo esse medo, todo esse desencanto, toda a descrença e toda a revolta contra o poder público e a própria sociedade — todo esse contexto foi refletido nos cinco filmes citados.
Dirty Harry
Inspirado no detetive David Toschi, um dos policiais que investigaram os crimes do serial killer Zodíaco na costa oeste dos EUA, o fictício Harry Callahan — o Dirty Harry do título original de Perseguidor Implacável — não inventou a persona cinematográfica do tira sisudo que não tem receio de cruzar os limites do certo e do errado para fazer justiça. Mas o filme de Don Siegel acabou se tornando o suprassumo do gênero.
Na trama ambientada em San Francisco, na Califórnia, Harry (encarnado por Clint Eastwood) caça o criminoso autodenominado Scorpio (Andrew Robinson), que mandou para o prefeito uma carta ameaçadora: vai matar uma pessoa por dia até receber US$ 100 mil. Para capturá-lo, o policial terá de sacar muito de sua Magnum .44 e de suas frases de efeito, como "Você tem de se fazer uma pergunta: tive sorte? Você teve, desgraçado?", a mais célebre antecessora da antológica "Go ahead. Make my day" ("Vá em frente. Faça meu dia"), dita em Impacto Fulminante (1983).
Por meio das ações de Harry, o Sujo, Perseguidor Implacável faz aquela pergunta seminal: os fins justificam os meios? Já na época, o personagem foi tachado de racista associado ao fascismo por críticos do porte de Roger Ebert e Pauline Kael — segundo ela, o filme era "profundamente imoral", uma peça de propaganda para um poder policial à margem da lei.
Em 2010, por conta dos 80 anos de Clint Eastwood, o jornalista cultural Joe Queenan rebateu, citando os trabalhos do ator em faroestes incensados (Por um Punhado de Dólares, O Estranho sem Nome, Três Homens em Conflito, A Marca da Forca, O Cavaleiro Solitário, Os Imperdoáveis): "É apenas quando o anjo vingador aparece num cenário urbano que os paladinos dos direitos civis se insurgem. Westerns se passam numa era com a qual os norte-americanos se sentem confortáveis. Se alguém faz justiça com as próprias mãos no final dos anos 1800, é um herói. Se o faz no final do século 20, é um fascista".