Por concidência, Marighella (2019), de Wagner Moura, entrou em cartaz nos cinemas brasileiros pouco depois do lançamento nacional da história em quadrinhos Incognegro (2008), escrita pelo estadunidense Mat Johnson e desenhada pelo britânico Warren Pleece, e às vésperas da estreia de Identidade (Passing, 2021), filme dirigido pela atriz Rebecca Hall e cotado para o Oscar. Em comum, as três obras abordam episódios traumáticos da história de cada país e contam com um protagonista negro que se passa ou é tomado por branco.
A estreia da cinebiografia realizada por Wagner Moura reacendeu o burburinho sobre a escalação do ator e cantor Seu Jorge para o papel do guerrilheiro Carlos Marighella (1911-1969), morto pela ditadura militar. Nas redes sociais, voltaram a aparecer comentários acusando o diretor do filme de "empretecer" Marighella. São queixas que não chegam a surpreender em um país que tem tradição no embranquecimento de personalidades negras — vide os casos do escritor Machado de Assis (1839-1908) e do compositor José Maurício Nunes Garcia (1767-1839). Em entrevista com os jornalistas José Eduardo Bernardes e Mariana Pitasse, do Brasil de Fato, Moura comentou:
— Seu Jorge, de fato, tem a pele mais escura do que a de Marighella, mas ele era preto, neto de escrava sudanesa (e filho de um imigrante italiano). Seu Jorge ser mais escuro do que Marighella não é uma questão. Ele não poderia era ser mais claro.
Corta para Incognegro.
Ser negro e se fingir de branco nos Estados Unidos pode, à primeira vista, parecer um ato de autopreservação.
Mas é praticamente o oposto.
Graças a uma combinação de genética, coragem e uma sorte danada, Zane Pinchback assume um disfarce para se arriscar e denunciar, como repórter do fictício New Holland Herald, os linchamentos perpetrados por supostos cidadãos de bem nos anos 1930. Entre 1889 e 1918, cerca de 2.522 negros foram assassinados nesses episódios violentos de racismo; agora, "muitos jornais brancos nem consideram isso uma notícia", conta o chamado Incognegro na abertura da homônima história em quadrinhos de Mat Johnson e Warren Pleece, lançada no Brasil pela editora Veneta, com tradução de Gabriela Franco (144 páginas, R$ 49,90).
Se esse personagem soa fantasioso demais, vale dizer que é um tipo comum nos Estados Unidos — tanto na ficção quanto na vida real. O próprio Mat Johnson, 51 anos, é um exemplo: "Eu cresci sendo um menino negro que parecia branco", o autor conta em uma nota que antecede a trama. No texto, ele também revela uma inspiração, Walter White — não o protagonista da série Breaking Bad, mas um ex-líder da NAACP (Associação Nacional pelo Avanço das Pessoas de Cor), que no início do século 20 se infiltrou em comunidades do extremo sul do seu país para desempenhar um papel tal qual o do Incognegro.
Ainda no mundo dos quadrinhos, temos o caso de George Herriman (1880-1944), o criador de Krazy Kat — apenas em 1971 descobriu-se que o cartunista não era branco. Tratava-se de mais um fruto de uma miscigenação forçada ou, nas palavras usadas por Johnson para descrever Zane Pinchback, "resultado de uma tradição sulista sobre a qual ninguém gosta de falar. Escravidão. Estupro. Hipocrisia".
Na literatura ficcional, há dois romances emblemáticos. Em A Marca Humana (2000), Philip Roth reconstitui a trajetória de Coleman Silk, professor universitário que, no começo do livro, é acusado de racismo por ter se referido a estudantes ausentes como "spooks", que significa fantasmas, mas também tem conotação pejorativa. Mais adiante, saberemos que o próprio Silk é um negro que se fez passar por judeu branco desde o alistamento na Marinha. Por meio de seu protagonista, Roth aborda temas característicos de sua obra, como identidade, autoinvenção, rebelião contra um sistema ou um destino e a moralidade da sociedade estadunidense — à época potencializada pela ascensão do politicamente correto. A Marca Humana ganhou em 2003 uma adaptação para o cinema, no Brasil intitulada Revelações, dirigida por Robert Benton, estrelada por Anthony Hopkins e Nicole Kidman e disponível no Amazon Prime Video.
O outro romance marcante acaba de também virar filme: Passing (1929), de Nella Larsen, publicado no Brasil como Identidade. Conta a história de duas mulheres que, depois de crescerem juntas, se reencontram na vida adulta: Irene se identifica como negra e está casada com um médico negro (que sonha em se mudar para o Brasil, um país onde, segundo ele, não há racismo); Clare se passa por branca e tem um marido rico e preconceituoso. Indicada a cinco categorias do Gotham Awards, premiação destinada a produções com baixo orçamento (até US$ 35 milhões), a versão cinematográfica traz no elenco Tessa Thompson e Ruth Negga e marca a estreia como diretora da atriz Rebecca Hall — ela própria neta de um homem que adotou a identidade branca e que criou os filhos como brancos. Identidade entra em cartaz nesta quarta-feira (10) na Netflix.
Incognegro (um trocadilho com incógnito e negro) não se propõe a ser um drama existencial: é um thriller sufocante — temperado por um insuspeito bom humor — sobre aquele que pode ser o último trabalho de Zane Pinchback. Ao rumar do Harlem, o bairro que virou sinônimo da comunidade negra de Nova York, para a cidade de Tupelo, no Mississippi, o jornalista vai encarar uma série de perigos — que incluem integrantes da Ku Klux Klan e uma família de fanáticos religiosos — e tentar desvendar um misterioso assassinato ao qual está pessoalmente ligado. Mas o ritmo de aventura impresso por Johnson, que se faz acompanhar pela excelente narrativa visual de Pleece, não abre mão das reflexões sociopolíticas. "Esta é a América. Você pode ver da janela", diz o xerife de Tupelo. "Homens e mulheres medíocres com moral definida pela Igreja em toda a sua glória. Pessoas normais que precisam de algo para odiar. Para culpar pelas coisas não serem perfeitas no mundo. Algo que possa explicar seus medos."
É um discurso que não fica restrito aos Estados Unidos nem aos anos 1930. Estão aí, para provar, a xenofobia, a intolerância religiosa, o preconceito contra a população LGBTQIA...
No posfácio, Mat Johnson afirma que quando começou a produzir Incognegro, em 2007, achava que estava escrevendo "um conto histórico sobre a jornada racial dos EUA em direção ao presente". Admite sua ingenuidade ao acreditar que a era do supremacismo branco, público e declarado havia acabado. Em 2017, as manifestações de neonazistas e nacionalistas brancos em Charlottesville, na Virgínia, evidenciaram a fatídica repetição da História (não à toa, foram inseridas pelo cineasta Spike Lee em um filme que guarda parentesco com a HQ, Infiltrado na Klan, de 2018, sobre um policial negro que se infiltra na organização supremacista na década de 1970 — está em cartaz na Netflix). "Em resposta às conquistas das minorias, exemplificadas pela eleição de dois mandatos do primeiro presidente negro (Barack Obama, em 2008 e em 2012), o ressentimento voltou a entrar no discurso americano como uma força direta e sem remorso", diz o escritor. "Infelizmente, o terrorismo racial descrito em Incognegro, de repente, voltou a mostrar as caras."
Charlottesville ecoou Tulsa. Em 1921, a cidade no Oklahoma tornou-se palco de um capítulo traumático e escondido da história dos Estados Unidos — reencenado na recente e premiada minissérie Watchmen (2019), disponível no HBO Max: a chacina da chamada Wall Street Negra. O rico distrito de Greenwood foi destruído por uma multidão branca, com a presença de membros da Ku Klux Klan, e mais de 300 negros morreram. Sob o silêncio de políticos e da imprensa, o terrível recado dado aos negros foi praticamente apagado dos registros locais, estaduais e nacionais. Foi somente em 1996 que o Massacre de Tulsa virou alvo de uma investigação formal naquele Estado. Mas foi somente em 2019, com Watchmen, que muita gente ficou a par da tragédia e passou a pesquisá-la.
Essa é a força e esse é um papel de ficções como Incognegro: expor o máximo de pessoas possível a verdades dolorosas. Ao relembrar a boa recepção de sua HQ junto à imprensa estadunidense, Mat Johnson diz que se espantou ao perceber que, aparentemente, muitos críticos estavam travando seu primeiro contato com a era dos linchamentos. E isso que, como o quadrinho reconstitui nas cenas iniciais, havia uma indústria da memória em torno da tortura e do assassinato de negros: "Eles levam partes do corpo como relíquias. Tiram fotos para lembrar o dia especial". Um fotógrafo produzia cartões-postais personalizados — "50 centavos por um, três por um dólar!".