Em cartaz na plataforma Looke (que pode ser testada gratuitamente via Amazon Prime Video), na Apple TV, no Google Play e no YouTube, Rainha de Copas (2019) encorpa a coleção de filmes sobre dilemas morais e famílias fraturadas produzidos na Dinamarca.
Trata-se de um dos países onde há o menor índice de desigualdade social e a maior qualidade de vida, um dos países mais pacifistas do mundo e um dos menos corruptos. Mas a julgar pelos filmes de autores como Lars von Trier, Thomas Vinterberg e Susanne Bier, a saúde e o bem-estar da nação são inversamente proporcionais à saúde mental e ao bem-estar de seus cidadãos. Seus filmes mostram personagens atormentados por demônios interiores ou aturdidos por segredos familiares, hostilizados pela sociedade ou atolados em encrencas nas quais eles mesmo se colocam, às vezes sem nem saber direito o motivo.
É o caso de Anne, a bem-sucedida advogada especializada em defender adolescentes vítimas de abuso sexual ou violência doméstica que é interpretada por Trine Dyrholm em Rainha de Copas (Dronningen, no título original), drama assinado pela diretora May el-Toukhy e vencedor do prêmio do público no Festival de Sundance, nos EUA. Aparentemente, ela leva uma vida gostosa em uma bela casa, onde mora com o marido, o médico Peter (Magnus Krepper), e as duas filhas gêmeas, as adoráveis Frida e Fanny, para quem costuma ler à noite Alice no País das Maravilhas (atenção à referência: no livro de Lewis Carroll, há uma personagem chamada Rainha de Copas, à qual todos temem e que tem a fama de decapitar seus desafetos).
A serpente no paraíso toma a forma de Gustav (Gustav Lindh, visto recentemente em Loucos por Justiça), o jovem e rebelde filho do primeiro casamento de Peter, desfeito justamente por causa de Anne. Depois de ser expulso de um colégio interno na Suécia, ele é enviado pela mãe para morar com a nova família do pai. O conflito inicial é até previsível: Gustav não se entrosa, bagunça tudo, inclusive comete atos ilícitos. O que vem a seguir é inesperado: Anne começa a se sentir atraída pelo rapaz.
— Às vezes, o que nunca deveria acontecer acontece — a madrasta diz ao enteado.
Rainha de Copas traz uma série de marcas desse cinema dinamarquês que é cirúrgico ao desnudar as fissuras familiares e as hipocrisias com as quais tentamos tapar nossas feridas — a protagonista vive o paradoxo de se tornar aquilo que, como advogada, combate: uma abusadora. Em especial na fotografia e na cenografia, o filme segue ou adapta algumas das 10 regras estipuladas por Von Trier e Vinterberg no manifesto do Dogma 95, o movimento que pregava um cinema mais realista. Em que pese a intensidade das atuações, os personagens parecem pessoas reais flagrados em afazeres bem rotineiros ou em momentos delicadíssimos, diante dos quais somos costumeiramente instigados a imaginar como reagiríamos. Não há pudor em relação ao sexo: se ele tem de acontecer para o desenvolvimento da trama, será mostrado sem artifícios.
A narrativa vai se construindo com elipses e lacunas, ainda que, aqui e ali, o entorno ajude o espectador a montar o quadro do desastre — em um jantar para amigos de Peter, Anne aumenta o volume da música para dançar, sozinha, Tainted Love, clássico da dupla britânica de synthpop Soft Cell, dos anos 1980: "Às vezes, sinto que tenho de / Fugir, tenho de / Escapar / Da dor que você leva ao meu coração / O amor que compartilhamos / Parece não chegar a lugar algum / E perdi minha luz / Pois me debato e me reviro, não consigo dormir à noite".
Ali está uma mulher que, agora sabe, tem de fugir, tem de escapar, apesar de não saber ao certo para onde. Ao mesmo tempo, a letra espelha, por antecipação, o sofrimento imposto a Gustav, que bem poderia fazer seus os versos "este amor contaminado que você tem me dado / Eu te dei tudo que um garoto poderia te dar / Pegue minhas lágrimas e isso não é nem perto de tudo".