E se ficarmos embriagados o dia inteiro? Qual será o impacto em nossa vida pessoal e no trabalho? O álcool é um aliado, um estimulante para a coragem, a desinibição, a criatividade, ou um canto da sereia, um abismo como o daquele aforismo do escritor norte-americano F. Scott Fitzgerald ("Primeiro você toma um drink, depois o drink toma um drink, depois o drink toma você")?
Questões assim são refletidas em Druk: Mais uma Rodada, filme que estreia nesta quinta-feira (25) em alguns cinemas do Brasil (mas não no RS) e em quatro plataformas de streaming — Now, Apple TV, Google Play e YouTube —, vitaminado por duas indicações ao Oscar. No dia 25 de abril, vai concorrer nas categorias de direção, assinada pelo dinamarquês Thomas Vinterberg, e melhor longa internacional. Nesta última disputa, desponta como favorito graças aos 35 troféus já conquistados, incluindo os de melhor filme, diretor, ator e roteiro no European Film Awards.
Hoje com 51 anos, Vinterberg é um dos principais cineastas da Dinamarca. Ao lado de Lars von Trier, ele criou o Dogma 95, manifesto lançado em 1995 que pregava um cinema mais realista (e que teve uma versão brasileira, o Dogma Feijoada). Suas 10 regras estipulavam, por exemplo, que a câmera deve ser usada na mão, sem qualquer tipo de iluminação que não esteja presente na própria locação, as tramas tinham de ser contemporâneas e era proibido recorrer a cenas de ação artificiais, como assassinatos. Entre os títulos marcantes do movimento, estão Festa de Família (1998), dirigido por Vinterberg e ganhador do prêmio especial do júri no Festival de Cannes, Os Idiotas (1998), de Von Trier, Mifune (1999), de Soren Kragh-Jacobsen, Urso de Prata no Festival de Berlim, Italiano para Principiantes (2000), de Lone Scherfig, e Corações Livres (2002), de Susanne Bier.
O Dogma 95 acabou em 2004, mas alguns de seus preceitos e de seus temas seguiram caracterizando o cinema produzido na Dinamarca. De um dos países onde há o menor índice de desigualdade social e a maior qualidade de vida, surgem filmes com personagens afligidos por dilemas morais, aturdidos por segredos de família, hostilizados pela sociedade e, não raro, atolados em encrencas nas quais eles mesmo se metem. As atuações equilibram intensidade e naturalidade: parece que flagramos pessoas reais em momentos complexos, diante dos quais somos instigados a imaginar como reagiríamos.
A filmografia de Vinterberg é exemplar. Festa de Família: no aniversário de 60 anos do patriarca, o filho mais velho denuncia publicamente o pai por ter estuprado tanto ele como sua irmã gêmea, que recentemente se matou. Querida Wendy (2005): jovem pacifista fica fascinado por uma pistola e convence os amigos a fundar um clube secreto em que o idealismo e as armas de fogo poderiam coexistir. Submarino (2010): dois irmãos crescem à sombra de uma mãe alcoolista e negligente — o mais velho acaba de sair da prisão, tem temperamento violento e bebe como um viking; o caçula é um zumbi corroído pela heroína que tenta criar sozinho o filho pequeno. A Caça (2012): às vésperas do Natal em uma cidadezinha, professor do jardim de infância é injustamente acusado de abusar sexualmente de uma garotinha, o que o torna alvo de perseguição por toda a comunidade.
Mais uma Rodada marca o retorno de Vinterberg a obras mais atuais e mais realistas, depois do romance Longe deste Insensato Mundo (2015), ambientado na Inglaterra vitoriana, do drama A Comunidade (2016), que se passa na década de 1970, e de Kursk: A Última Missão (2018), que reconstitui o trágico acidente com um submarino russo no ano 2000. A trama coescrita por Vinterberg e Tobias Lindholm (seu parceiro em Submarino, A Caça e A Comunidade) é sobre quatro professores de colégio que enfrentam a crise da meia-idade. O fio condutor é Martin, interpretado pelo excelente Mads Mikkelsen, premiado como melhor ator no Festival de Cannes por A Caça. O personagem vê-se desanimado e desafiado pelos alunos da classe de História. Em casa, o relacionamento com a esposa, Anika (Maria Bonnevie), e com os dois filhos também não é dos melhores.
Sua rede de suporte são três colegas — todos igualmente lidando com alunos desmotivados — encarnados por atores que costumam trabalhar com Vinterberg: Nikolaj (Magnus Millang, visto, por exemplo, em Kursk), professor de Filosofia às voltas com três crianças pequenas em casa, o solteiro Tommy (Thomas Bo Larsen, um dos irmãos de Festa de Família), que dá aulas de Educação Física, e Peter (Lars Ranthe, de A Comunidade), o instrutor do coral.
Para ajudar o amigo, o grupo decide se juntar a Martin no teste de uma teoria formulada por um filósofo norueguês, Finn Skarderud, a de que o ser humano nasce com um déficit de álcool no organismo. Os quatro passam a beber logo no início do dia e vão aumentando o consumo, documentado em um diário que é reproduzido na tela. O naturalismo das atuações não se deve à embriaguez do elenco: sim, os atores tomaram porres, mas nos ensaios, que foram gravados para que depois, sóbrios, eles mimetizassem o jeito de falar e de caminhar, de se divertir e de se acabar. Os quatro tornam-se irresponsáveis e inconsequentes como os adolescentes que os rodeiam na escola.
Essa proximidade com a adolescência foi um ponto de partida para Mais uma Rodada mas quase se transformou em um impeditivo para sua realização. Entre as inspirações de Vinterberg, está o relato de sua filha Ida sobre uma brincadeira na qual colegiais correm em torno de um lago enquanto disputam quem consome em menor tempo um engradado de cerveja. É a cena que abre o filme, e a escola onde a jovem estudou serviu de locação. Ida também participaria, estreando como atriz no papel de um dos filhos de Martin. Mas ela morreu aos 19 anos, vítima de um acidente de carro causado por um motorista distraído com seu celular, quatro dias depois de iniciadas as filmagens.
— A única razão pela qual pude continuar o filme foi porque ela odiaria que eu parasse — disse o diretor em entrevistas, informando que houve mudanças no roteiro. — Não poderia mais ser só sobre beber. Tinha de ser sobre estar acordado para a vida. E quisemos fazer um filme que não fosse apenas sobre estar vivo, mas sobre viver.
De fato, Mais uma Rodada não é uma jornada de autodestruição alcoolista, à la Farrapo Humano (1945) ou Despedida em Las Vegas (1995). E, como também é típico do cinema dinamarquês, Thomas Vinterberg não faz uma abordagem moralista, não louva nem condena seus personagens. Procura um balanço — "A mesma coisa que pode elevar a conversação, a arte e a política é capaz de destruir famílias e relacionamentos", reconhece o cineasta. Assim, ele mostra a derrocada provocada pela bebida, mas também os ganhos sociais, afetivos e até profissionais. Há drama e dor, mas também humor (em especial nas inserções estreladas por políticos como Boris Yeltsin, Bill Clinton e Nicolas Sarkozy) e camaradagem, muita camaradagem.
— Assistimos a tantos filmes sobre como o álcool mata pessoas. Mas existe um motivo pelo qual um monte de gente bebe: isso pode te fazer voar — disse Vinterberg em entrevista ao site IndiWire, aludindo à catártica e antológica cena final.
Essa cena, que envolve um inesperado número de dança e a participação de um bando de ex-colegas de Ida, sintetiza os paradoxos de Mais uma Rodada. Simultaneamente, é vibrante e triste. Dentro do contexto que leva a ela, pode ser entendida tanto como uma comemoração quanto como uma recusa, um embate entre o prazer e o desespero. A letra da canção (What a Life, do trio dinamarquês Scarlet Pleasure) que é entoada pelos figurantes e embala a coreografia chancela a ambiguidade, reforçada pela última imagem: "I am so thrilled right now / 'Cause I'm poppin' right now / Don't wanna worry 'bout a thing / But it makes me terrified / To be on the other side / How long before I go insane? / What a life, what a night / What a beautiful, beautiful ride / Don't know where I'm in five / But I'm young and alive / Fuck what they are saying, what a life".