Pedofilia é um tema com abordagem por demais espinhosa. Encará-lo sem os rodeios melodramáticos e os julgamentos morais recorrentes na ficção é um dos muitos méritos de Thomas Vinterberg na condução de A Caça, filme dinamarquês que estreia amanhã em Porto Alegre e já se coloca entre os lançamentos cinematográficos deste ano.
Porque a pedofilia, para Vinterberg, é um ponto de partida para desnudar outras questões complexas que envolvem as relações afetivas e sociais.
A carga emocional de A Caça está sobre os ombros de Mads Mikkelsen, o protagonista, aclamado com o prêmio de melhor ator no Festival de Cannes de 2012. É um ator em fase de graça. Conhecido do grande público como o vilão de 007 - Cassino Royale e dos apreciadores dos filmes de arte por trabalhos do porte de Coco Chanel e Igor Stravisnky e O Amante da Rainha, Mikkelsen, 47 anos, está à frente também da série de TV Hannibal.
Seu personagem em A Caça é Lucas, professor do jardim de infância de uma cidadezinha do interior da Dinamarca, onde a rotina dos homens é ainda um tanto tribal - bebem muito, cantam com copos erguidos, banham-se no rio congelado e caçam veados na floresta. Lucas faz parte dessa turma. É querido pelos amigos e adorado pelo pequenos alunos. Com a proximidade do Natal, o professor está animado com a chegada do filho adolescente, que mora em outra cidade com a mãe e decidiu viver um tempo com ele.
Então vem o baque. Klara (Annika Wedderkopp), linda garotinha que, além além de aluna, é filha do melhor amigo de Marcus, diz à diretora da escolinha que Lucas fez coisas "impróprias". O que o espectador viu até então foi Lucas se portar diante de Klara como uma figura afetiva e protetora - suprindo, aos olhos da introspectiva menina, uma certa negligência de seu próprio pai.
Vinterberg não faz suspense com o fato de Lucas ser ou não ser culpado do ato abjeto que lhe imputam Klara e todos os que nela acreditam. Nada é sonegado ou fica nas entrelinhas. Sabemos de pronto o que ocorreu. Recurso que é o grande achado narrativo do diretor (corroteirista da trama) para fazer de A Caça um filme tão impactante.
Interessa mais a Vinterberg não a abordagem direta de um suposto crime ou as especulações psicológicas acerca das fantasias infantis. O centro nervoso do filme está nas consequências do episódio, estopim para uma tensão crescente, como no longa que revelou o cineasta, Festa de Família (1998): A Caça também trata das máscaras vestidas por aqueles que não são bem quem aparentam ser quando as condições estáveis do convívio social sofrem algum sobressalto.
A acusação faz de Lucas um pária. Os amigos lhe viram as costas, e a hostilidade descamba em tortura psicológica e agressão físicas. Vinterberg promove um acurado estudo comportamental do que se convencionou chamar de movimento de manada. A cidadezinha dinamarquesa surge aqui como um espelho do mundo contemporâneo, onde o gatilho da hipocrisia, da intolerância e do obscurantismo não raramente é disparado pela falta de informação ou pela leitura convenientemente torta dos fatos.