Aquele comentário foi como uma bofetada em mim. Em uma rede social, um usuário ironizou o teor do post de GZH: "Filmes são essenciais?". Em uma hierarquia jornalística, certamente estão abaixo, por exemplos, das coberturas sobre a pandemia, sobre a crise econômica, sobre casos de política que parecem de polícia. Mas a provocação fez meu sangue ferver. Precisei frear o ímpeto de responder na hora e com sarcasmo (o que nunca vale a pena: talvez renda umas curtidas, só que é tipo pregar aos já convertidos).
Juro que não foi a desvalorização do meu trabalho como colunista de cinema o que pesou. Eu senti como um ataque mais pessoal e mais profundo. Antes, muito antes de resolver cursar Jornalismo, filmes já eram essenciais para mim, a ponto de eu encher pastas com recortes de críticas publicadas em jornais e revistas.
Os benefícios trazidos por um filme podem não ser mensuráveis ou mesmo tangíveis, mas existem e são capazes de durar para sempre. Todo mundo tem guardado na memória uma cena, uma fala, um personagem, uma emoção.
Filmes não são arroz e feijão, mas alimentam nosso espírito. Filmes não são dinheiro, mas enriquecem nossa cultura (na verdade, geram empregos e movimentam a economia, mas tem gente que não quer enxergar isso). Filmes não são remédios, mas ajudam a curar a fossa, o luto, a saudade. Filmes não são salas de aula, mas educam, estimulam, expandem horizontes. Filmes não são casas, mas nos abrigam quando estamos precisando fugir do mundo por um par de horas.
O contrário também ocorre: filmes trazem o mundo para dentro de nossas casas (inclusive mundos que nunca vamos visitar, porque fantasiosos). E filmes podem fazer o mundo conhecer o que acontece nas nossas casas: não faltam obras que denunciaram violações dos direitos humanos, expuseram crimes de Estado, deram palco e voz para populações oprimidas e silenciadas. Não à toa, no passado e no presente, aqui, ali e acolá, o cinema vira alvo de censura. Se filmes não fossem essenciais, se filmes fossem tão supérfluos, governos não dariam bola, né?
Filmes mudam realidades, ainda que não necessariamente para melhor. Reza a lenda, por exemplo, que foi depois de O Poderoso Chefão (1972) que os mafiosos da vida real passaram a cultivar uma imagem de glamour. Por outro lado, há um exército de médicos e cientistas no combate à pandemia que escolheram essas profissões inspirados por dramas hospitalares e ficções científicas assistidos na infância ou na adolescência.
E, como uma ponte de mão dupla, muitos vovôs e vovós, hoje, fazem dos filmes um refúgio onde voltam a ser jovens. É como se reencontrassem um velho amigo, com quem reencenam lembranças e se permitem saborear a vaidade de já saber, palavra por palavra, o que o outro vai dizer.
Filmes são pródigos em promover encontros improváveis e emocionantes. Pode ser o de um menino com um extraterrestre, mas também pode ser o de um garoto palestino com gêmeos israelenses — aos quais o primeiro, em uma cena arrepiante do documentário Promessas de um Novo Mundo (2001), pergunta:
— Depois deste filme, nós vamos continuar amigos?
Os encontros marcantes também acontecem fora das telas — quantos namoros e casamentos não começaram às portas de um cinema ou no escurinho de uma sessão? O amor, porém, não é obrigatório: do ódio também nasce a união. Tão inconformados com o filme da Liga da Justiça lançado em 2017, os fãs se mobilizaram para pressionar o estúdio cinematográfico a liberar a versão do diretor Zack Snyder, que chegou ao streaming na última quinta-feira (18).
Há coisas mais essenciais (e melhores) do que as quatro horas de Liga da Justiça de Zack Snyder? Sem dúvida. Mas a tocante comunhão entre o cineasta e o seu público justifica essa extravagância.
Bem, acho que já me estendi demais na resposta àquele comentário. Vou parar por aqui para ver um filme. Neste cenário de bandeira preta e mortes aos milhares, estou precisando.