Os bastidores de Liga da Justiça de Zack Snyder são mais emocionantes, tensos e envolventes do que o filme em si — que, até 7 de abril, está disponível para locação nas plataformas Apple TV, Now, Google Play, YouTube e Vivo Play (em junho, volta a cartaz, com exclusividade no novo HBO Max).
A história que justificaria quatro horas de duração é a de como o cineasta foi de uma tragédia familiar à aclamação popular. Essa trama inclui os relatos de comportamento abusivo e de racismo cometidos pelo diretor que o substituiu na primeira versão da aventura cinematográfica dos super-heróis da DC Comics, lançada em 2017. Joss Whedon, que tinha no currículo dois sucessos de bilheteria do gênero pela concorrente, a Marvel — Os Vingadores (2012) e Vingadores: Era de Ultron (2015), com um total de US$ 2,9 bilhões arrecadados —, entrou em cena quando Snyder precisou se afastar para lidar com o luto e o trauma do suicídio de sua filha de 20 anos, Autumn. A visão amarga, a mão dura e o pendor para a violência do realizador de O Homem de Aço (2013) e Batman Vs Superman: A Origem da Justiça (2016) continuaram presentes, mas dividindo espaço com piadinhas constrangedoras e uma paleta de cores mais solar. Ou seja. Liga da Justiça virou uma maçaroca sem personalidade, mal recebida por público (parou nos US$ 657 milhões) e por crítica (40% de aprovação no site Rotten Tomatoes).
Inconformados com a estreia do supergrupo dos quadrinhos no cinema, os fãs, ainda em 2017, movimentaram-se para exigir que a Warner (dona da DC) liberasse a versão de Zack Snyder - via hashtag #ReleaseTheSnyderCut. O próprio cineasta endossou a campanha, à qual se juntaram atores como Jason Momoa (o Aquaman) e Gal Gadot (a Mulher-Maravilha). Até que em 2020 o estúdio cedeu e até deu mais dinheiro - entre US$ 40 milhões e US$ 70 milhões — para o diretor reunir de novo a equipe de pós-produção e inclusive gravar cenas adicionais, como a que traz uma participação do Coringa interpretado por Jared Leto. No total, somando a primeira versão, as refilmagens de Whedon e o novo corte, a brincadeira custou de US$ 340 milhões a US$ 370 milhões.
Isso são os bastidores, cheios de drama, intriga, extravagâncias financeiras, reviravoltas e redenção, com doses de humor providenciadas pelo porco apagamento digital do bigode que o ator Henry Cavill, o Superman, estava usando nas refilmagens, por causa de seu papel em Missão Impossível: Efeito Fallout (2018), e com direito a uma paixão de Hollywood: a batalha judicial de um indivíduo contra uma corporação. Ray Fisher, que encarna o Ciborgue, disse que era tóxico o ambiente sob o comando de Joss Whedon e acusou a Warner de, por racismo, diminuírem o tamanho de seu papel e de outros personagens negros na versão que chegou aos cinemas.
Pois um dos raros trunfos de Liga da Justiça de Zack Snyder é um desenvolvimento mais completo do Ciborgue. Também aparecem mais os vilões Darkseid e seu lacaio Lobo da Estepe. De resto, o que temos é apenas o desnecessário esticamento em quatro horas da mesma trama que o Liga da Justiça de 2017 apresentou em duas. São 240 minutos de muita breguice, muita câmera lenta e muita computação gráfica, embaladas em uma abordagem supostamente madura dos super-heróis — parece mais a concretização dos sonhos de um guri de 10 anos (a propósito, Snyder tem 55), que confunde sinistro com adulto. Isso ajuda a explicar, por exemplo, a utilização do uniforme preto do Superman, que não tem sentido nenhum na história, a não ser atender ao fetiche de quem leu os gibis sobre a morte e a ressurreição do kryptoniano publicados na metade inicial da década de 1990.
Se você teve a sorte de não ver o primeiro Liga da Justiça, resumo aqui a sinopse (AVISO QUE PODE HAVER SPOILERS): o Superman está morto, mostra a manchete do jornal, e a Terra se vê diante de uma nova ameaça vinda do espaço - o Lobo da Estepe, um vilão digital e com voz distorcida (coitado do bom ator Ciaran Hinds, que não contracenou com ninguém exceto uma tela verde e que sequer pode ser reconhecido). Auxiliado por "parademônios" – uma espécie de homens-inseto – e querendo se redimir junto ao temível Darkseid (outro personagem gerado por computador, dublado por Ray Potter), o Lobo veio atrás das três "caixas maternas", artefatos que, claro, contêm enorme poder e podem causar a destruição do mundo. Uma está guardada na ilha das Amazonas, outra, no reino submerso dos Atlantes, e a terceira foi escondida pelos homens. (Verdade seja dita, a Marvel adotou um enredo semelhante em Vingadores: Guerra Infinita, de 2018).
É hora de Batman (Ben Affleck) recrutar um time de heróis: a Mulher-Maravilha (Gal Gadot), Flash (Ezra Miller), Ciborgue (Ray Fisher) e Aquaman (Jason Momoa). Mas nem todos vão responder de imediato a seu apelo. Mais adiante – beeem mais adiante nessa nova versão -, a trupe vai ressuscitar Superman (Henry Cavill), que, num primeiro momento, despejará sua fúria contra os próprios colegas de heroísmo, afinal, ser sombrio é o fino na cartilha de Zack Snyder. Pode ter certeza, também, de que haverá escuros, barulhentos e intermináveis duelos e combates grupais, uma coleção de frases de efeito e quase zero discussões morais mais elevadas. Para os fãs devotados, o cineasta espalhou uma série de presentinhos e referências, que vão desde a inédita aparição de Ajax, o Caçador de Marte (interpretado por Harry Lennix), até o distópico epílogo em que Batman e Coringa cutucam um ao outro, aludindo a destinos sangrentos de entes queridos.
Esse epílogo, que sucede uma divisão em seis partes do filme, tem pouco menos de 25 minutos. De interessante, mas não necessariamente positivo, temos a visão de Snyder para o que seria o futuro da DC no cinema. SPOILER PRA CARAMBA AGORA: de novo, como já acontecera em Batman Vs Superman e nas duas versões de Liga da Justiça, o Superman, eterno defensor dos fracos e oprimidos, surgiria como agressor dos bombados e poderosos.
Mas era tudo um sonho do Batman. Pena que nós não temos essa prerrogativa, a de acordar e perceber que não perdemos quatro horas de vida assistindo a Liga da Justiça de Zack Snyder, que talvez seja mais marcante pelo que traz de ridículo, como seus vários "comerciais", a maioria deles em câmera lenta. O logotipo de uma marca de carros é visto inúmeras vezes, e um gergelim gigante de um hambúrguer também ganha destaque em slow-motion. Até uma cena de luto da repórter Lois Lane (vivida por Amy Adams) — ela saindo na chuva com dois copos de café para visitar o Memorial do Superman e fazer um agrado a um policial — parece uma peça publicitária. O suprassumo já estava presente no filme de 2017, mas foi estendido pelo diretor em 2021. É a sequência em que Aquaman sai de um bar levando na mão uma garrafa de uísque que é bebida no guti-guti antes de ele desaparecer no turbulento mar. Não seria estranho se virasse uma propaganda da própria bebida, de um perfume masculino, de uma academia de musculação, de um estúdio de tatuagem, de um xampu para cabelos frondosos como os do ator Jason Momoa.