Era uma Vez um Sonho é o título pavoroso dado no Brasil para Hillbilly Elegy. Mas não é culpa da Netflix: o livro em que se baseia o filme já havia sido lançado com esse nome que, além de ser genérico, não consegue dar pista nenhuma sobre a "elegia caipira" escrita pelo americano J.D. Vance e agora adaptada pelo cineasta Ron Howard.
Howard tem prática em levar histórias reais para as telas. Ganhou os Oscar de melhor filme e diretor por Uma Mente Brilhante (2001), a cinebiografia do matemático John Nash, e concorreu aos mesmos prêmios com Frost/Nixon (2008), reconstituição da célebre entrevista dada a um jornalista britânico pelo único presidente americano a sofrer impeachment. Também são dele Apollo 13 (1995), sobre a corrida espacial dos Estados Unidos à Lua, A Luta pela Esperança (2005), sobre o boxeador dos anos 1930 James J. Braddock, Rush: No Limite da Emoção (2013), sobre a rivalidade dos pilotos de Fórmula-1 James Hunt e Niki Lauda nos anos 1970, e No Coração do Mar (2015), que reencena o drama inspirador do romance Moby Dick, no século 19. Era uma Vez um Sonho engrossa a lista.
No livro, Vance, 36 anos, hoje um investidor renomado e filiado ao partido Republicano, narra suas memórias como um filho do empobrecido Cinturão da Ferrugem — região que compreende Estados como Michigan e Ohio, em declínio econômico desde a década de 1980. O filme se alterna em dois tempos: no presente, em 2011, Vance (interpretado por Gabriel Basso), um estudante de Direito na prestigiada Yale, está envolvido com entrevistas de estágio que podem tirá-lo do sufoco financeiro e abrir as portas para um futuro melhor.
No passado, em 1997, o adolescente J.D. (Owen Asztalos) convive com o bullying, a falta de perspectivas e a desestrutura familiar, personificada por Bev (Amy Adams), uma mãe viciada em drogas e dada a rompantes de violência — às vezes contra o próprio filho. Diante do comportamento errático de Bev, que num momento é afetuosa e no outro, agressiva, que num momento pode estar namorando um policial e no outro, um plantador de maconha, o garoto encontra apoio na avó materna, durona e fã da franquia O Exterminador do Futuro, personagem de Glenn Close.
Lançado nos Estados Unidos em 2016, o livro de Vance virou best-seller e foi apontado como obra que ajuda a explicar a eleição de Donald Trump para a Casa Branca, ocorrida no mesmo ano. A população retratada pelo autor são brancos de classe média baixa e interioranos, sem muita qualificação acadêmica e sobrevivendo do subemprego. Segundo Vance, são fatalistas, culpam os outros — o governo, os patrões, os negros, os hispânicos, os chineses etc — por seus problemas. Trump falou diretamente aos ouvidos desse eleitorado.
O filme, entretanto, passa ao largo de uma discussão mais sistêmica sobre a decadência econômica da região e as origens do ressentimento. Quando se permite um comentário social, exala artificialismo, como na cena em que o jovem J.D. provoca silêncio sepulcral em uma mesa de empresários ao revelar que é um caipira — como se eles nunca tivessem visto um. Pior é que na sequência o rapaz vai ligar para a namorada (Freida Pinto, de Quem Quer Ser um Milionário?), solicitando ajuda diante de tantos talheres. E logo depois é a vez de J.D. receber um telefonema com um pedido de socorro da irmã, Lindsay (Haley Bennett, de O Diabo de Cada Dia): a mãe sofreu uma overdose e está internada, mas não tem grana para ficar no hospital nem casa para morar. O protagonista, então, precisa viajar para a cidadezinha onde cresceu e voltar a tempo de uma entrevista de estágio — seu conflito, resumidamente, é abandonar sua família ou abandonar seu sonho.
Despido dos componentes políticos ou sociológicos, o filme acaba se mostrando como uma fábula — talvez isso justifique o título nacional — sobre meritocracia, uma história sobre um indivíduo que supera adversidades. Uma edulcorada trama de tormento e triunfo feita de olho no Oscar.
Que, de fato, pode retribuir o olhar para as atuações de Amy Adams e Glenn Close. Há quem considere suas personagens caricaturais e suas performances exageradas. Mas são elas que conseguem manter interessante este dramalhão com tom moralista e bastante previsível e esquecível, nem que seja na base do grito e da careta (é o que evita o filme se chamar Era uma Vez um Sono!). Pena que Ron Howard não tenha investido um pouco mais no duelo entre mãe e filha — faltou, por exemplo, saber sobre o passado daquela relação.
Amy, 46 anos, e Glenn, 73, são habitués do Oscar. A primeira concorreu a melhor atriz por Trapaça (2013) e cinco vezes como coadjuvante: Junebug: Retratos de Família (2005), Dúvida (2008), O Vencedor (2010), O Mestre (2012) e Vice (2018). Perdeu em todas.
A segunda já soma sete indicações. As três primeiras como coadjuvante — O Mundo Segundo Garp (1982), O Reencontro (1983) e The Natural (1984) — e as demais como melhor atriz: Atração Fatal (1987), Ligações Perigosas (1988), Albert Nobbs (2011) e A Esposa (2017). Também perdeu em todas. (O "sempre" do título desta coluna pode ser hiperbólico, mas o "nunca" não.)
Os fãs da veterana estrela estão divididos. Uns querem que ela conquiste o Oscar o quanto antes, mesmo que por um filme abaixo da média — seria como uma premiação pela carreira. Outros preferem que Glenn Close nem seja indicada por Era uma Vez um Sonho, até para evitar mais uma frustração, e apostam fichas na vindoura versão cinematográfica do musical da Broadway baseado no clássico Crepúsculo dos Deuses (1950), de Billy Wilder. A atriz vai reprisar sua premiada atuação como Norma Desmond. Seja como for, Sra. Close, estamos sempre prontos para o seu close.