O streaming tem memória curta. A julgar por três dos serviços mais populares – Amazon Prime Video, Globoplay e Netflix –, nunca existiram o expressionismo alemão (surgido nos anos 1920), o neorrealismo italiano (anos 1940), a nouvelle vague francesa (anos 1950) e o cinema novo brasileiro (anos 1960). Tampouco se tornaram essenciais cineastas como o japonês Akira Kurosawa, o indiano Satyajit Ray, o iraniano Abbas Kiarostami e o chinês Zhang Yimou.
Ainda que se ouça o espanhol e até o coreano, o idioma predominante dos filmes em cartaz nessas plataformas é o inglês. Mas o recorte de tempo é limitado mesmo para Hollywood. O grosso dos títulos em exibição foi produzido da década de 1980 para cá.
Daí que alguns gênios do cinema americano podem ser ilustres desconhecidos para as gerações atuais. É o caso de Billy Wilder (1906-2002), ganhador de seis Oscar e concorrente a outros 15, premiado também nos festivais de Cannes e de Veneza. Uma pesquisa em endereços de streaming revela que apenas três dos 26 longas-metragens que ele dirigiu entre 1934 e 1981 estão disponíveis no Brasil. O Telecine Play oferece Pacto de Sangue (1944), Crepúsculo dos Deuses (1950, também no catálogo do Google Play, da Apple TV e do YouTube) e Se Meu Apartamento Falasse (1960).
O irônico é que uma dessas obras é justamente sobre o esquecimento na indústria cinematográfica. Indicado a 11 Oscar – incluindo melhor filme, diretor, ator (William Holden) e atriz (Gloria Swanson) – e vencedor das estatuetas de roteiro, direção de arte em preto e branco e trilha sonora, Crepúsculo dos Deuses conta a história de uma veterana estrela do cinema mudo, Norma Desmond, que contrata um jovem roteirista para ajudá-la a reconquistar o reinado. Drama sombrio e sarcástico, é, ao lado da comédia romântica Sabrina, um dos poucos títulos do cineasta que Hollywood já refilmou ou pretende refilmar – Glenn Close deve encabeçar o elenco da versão do laureado musical da Broadway protagonizado pela atriz, e que, por sua vez, baseia-se no longa de 1950.
Nascido em uma família judia da Áustria, Billy Wilder trocou a Europa pela América quando Adolf Hitler tomou o poder na Alemanha, onde o futuro cineasta já trabalhava como roteirista. Antes de migrar para os Estados Unidos, fez escala em Paris, cenário de sua estreia na direção: Semente do Mal (1934), feito em parceria com Alexander Esway, sobre um bando de rapazes que rouba carros.
Era um apaixonado pela palavra, pelos diálogos rápidos, pelo duplo sentido. Em Hollywood, antes de ser um habituê do Oscar com seus próprios filmes, disputou por três vezes o prêmio de melhor script, como coautor de Ninotchka (1939), A Porta de Ouro e Bola de Fogo (ambos de 1941). Frasista contumaz, defendia assim o modo de alicerçar suas tramas muito mais no texto do que na imagem:
— Por que filmar uma cena do ponto de vista de uma ave voando ou de um inseto? Isso tudo só serve para desbundar a burguesia, para maravilhar os críticos de classe média.
Ao mesmo tempo, sabia que não podia entregar tudo de mão beijada para o espectador. Com o diretor alemão Ernst Lubitsch, de Ninotchka, aprendeu uma máxima que propagou: "Deixe o público somar dois mais dois. Vão amá-lo para sempre".
Testemunha do boom do technicolor, preferia rodar em preto e branco: achava que filmes coloridos ficavam com "cara de sorveteria", tirando o foco do que os atores diziam – um baita problema para as piadas de suas comédias, gênero ao qual ficou associado o nome de Wilder, com seu cinismo e seu senso de humor algo amargo, algo ácido. A propósito, o cineasta zombava de si mesmo. Na biografia E o Resto É Loucura, disse ao jornalista alemão Hellmuth Karasek que a única coisa da qual se orgulhava era de seu nome ter aparecido nas palavras cruzadas do jornal The New York Times: "Uma vez no 17 horizontal. Outra no 21 vertical".
Mas o humor não foi sua única praia. Como Stanley Kubrick (1928-1999), mas sem o prestígio e, talvez, sem a ambição artística do diretor do épico Spartacus, da comédia Dr. Fantástico, da ficção científica 2001: Uma Odisseia no Espaço e do terror O Iluminado, Wilder conseguiu cunhar clássicos em gêneros distintos – do policial noir (Pacto de Sangue) ao filme de tribunal (Testemunha de Acusação), passando pela aventura de guerra (Cinco Covas no Egito) e pelo drama com crítica social (A Montanha dos Sete Abutres).
Seus personagens eram mundanos e ambíguos, às vezes cansados das rotinas (profissionais, domésticas etc) ou até moralmente torpes – gente como a gente. Lidavam com temas cotidianos que costumavam ficar escondidos sob a hipocrisia da sociedade, como adultério e incerteza sexual. Não por acaso, a farsa e o disfarce sempre estavam presentes em suas obras, ora explicitamente, ora de maneira mais sutil. Gostava de criaturas que representam, como se a existência fosse um eterno teatro. Como se todos nós fossemos um pouco Norma Desmond: meio perdidos, meio devaneantes, atuando para não sermos esquecidos, esperando pela redenção, esperando que alguém dê um close na nossa vidinha como naquela última cena de Crepúsculo dos Deuses.
Dez filmes essenciais
Se é raro de ser encontrado no streaming, Billy Wilder recebeu boa atenção do mercado brasileiro de DVDs. Cerca de 20 de seus 26 filmes foram lançados por aqui – eu tenho 15 na coleção. Comece assistindo a estes 10:
Pacto de Sangue (1944)
Com roteiro coescrito pelo romancista Raymond Chandler, de O Longo Adeus, a partir de livro de James M. Cain, o filme sintetiza, brilhantemente, a gramática do cinema noir. Na trama, Fred MacMurray é um vendedor de seguros que se acha esperto e acaba seduzido por uma loira fatal (Barbara Stanwyck) que deseja se livrar do marido. Pacto de Sangue (Double Indemnity) foi indicado a sete Oscar, incluindo melhor filme, diretor, atriz, roteiro e, claro, a fotografia em preto e branco assinada por John F. Seitz, cheia de contrastes e sombras.
Farrapo Humano (1945)
Quatro dias na vida de um alcoólatra que tenta, sem sucesso, livrar-se do vício. Surpreendentemente, Wilder aposta bastante na imagem e na edição para contar sua história – a apresentação do status dos principais personagens, por exemplo, prescinde das palavras. O amargo e realista drama, que se estende à situação de outros casos de dependência química, levou os Oscar de melhor filme, diretor, roteiro e ator (Ray Milland). Farrapo Humano (The Lost Weekend) também recebeu o Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes.
Crepúsculo dos Deuses (1950)
Para muitos, esta é a grande obra-prima do cineasta. Para outros tantos, é o mais cruel retrato dos bastidores da indústria cinematográfica já filmado. Assim escreveu Roger Lerina em Zero Hora quando Wilder morreu, aos 95 anos, em 2002: "O sistema de estrelas que movimentou a fábrica de sonhos hollywoodiana até meados dos anos 1950 é mostrado em seus estertores: atores e cineastas da velha guarda colocados de lado, roteiros originais trocados por fórmulas de sucesso, vulgaridade no lugar de bom gosto, pipoca em vez de cinefilia. Tudo isso narrado retrospectivamente por um roteirista morto, boiando na piscina de uma mansão decadente de Sunset Boulevard".
Um pecado Crepúsculo dos Deuses (Sunset Boulevard) ter saído da festa do Oscar com apenas três estatuetas (roteiro, direção de arte em preto e branco e música). Concorreu também a melhor filme, diretor, ator (William Holden), atriz (Gloria Swanson, praticamente resgatada do limbo), ator coadjuvante (Erich von Stroheim, diretor na época do cinema mudo), atriz coadjuvante (Nancy Olson), fotografia em preto e branco.
A Montanha dos Sete Abutres (1951)
Em um dos melhores e mais mordazes filmes sobre jornalismo já realizado, Kirk Douglas faz um repórter capaz de levar às últimas consequências a exploração da miséria humana para conseguir um furo de reportagem, durante a cobertura de um desmoronamento em uma mina em Albuquerque, no Novo México. A Montanha dos Sete Abutres (Ace in the Hole) concorreu ao Oscar de melhor roteiro e recebeu os prêmios de roteiro e música no Festival de Veneza. Wilder retomaria a crítica à ganância e o sensacionalismo da mídia, mas em tom de comédia, em A Primeira Página (1974), estrelado pela entrosada e hilária dupla Jack Lemmon e Walter Matthau.
Inferno nº 17 (1953)
Um dos filmes mais amargos do diretor, se passa antes do Natal de 1944, durante a Segunda Guerra Mundial, e tem como cenário um campo de prisioneiros aliados. Dois deles tentam escapar dos nazistas, mas acabam mortos após serem descobertos. Os sobreviventes desconfiam que há um traidor entre eles: um cínico sargento americano, papel de William Holden, ganhador do Oscar de melhor ator. Inferno nº 17 (Stalag 17) foi indicado também aos prêmios de direção e ator coadjuvante (Robert Strauss).
Sabrina (1954)
Típica e charmosa comédia romântica dos áureos tempos de Hollywood, concorreu a seis Oscar, incluindo melhor filme, diretor, atriz e roteiro, e venceu o de figurino (pela lendária Edith Head). Na história, Audrey Hepburn, a filha do chofer de uma família rica, fica dividida entre os dois filhos do patrão: o playboy (William Holden) e o workaholic (Humphrey Bogart). Até hoje, Sabrina é o único longa de Wilder refilmado para o cinema, em 1995, por Sydney Pollack, com Julia Ormond, Greg Kinnear e Harrison Ford formando o triângulo amoroso.
O Pecado Mora ao Lado (1955)
O que você faria se Marilyn Monroe fosse sua vizinha e sua esposa estivesse de férias? Aconteceu com Tom Ewell nesta deliciosa comédia (The Seven Year Itch, no original) que tem a clássica cena da saia levantada.
Testemunha de Acusação (1957)
Baseado na peça homônima de Agatha Christie, a Dama do Crime, gira em torno do assassinato de uma viúva rica. O amante dela (Tyrone Power), casado, está sendo julgado, e sua única esperança é o testemunho da esposa (Marlene Dietrich). Prepare-se para reviravoltas. Foram seis indicações ao Oscar para Witness for the Prosecution (título original), incluindo melhor filme, diretor e ator (Charles Laughton, que faz o advogado de defesa).
Quanto Mais Quente Melhor (1959)
Ninguém é perfeito, como diz o personagem de Joe E. Brown no célebre final desta comédia de erros, mas um filme pode ser. É o caso de Quanto Mais Quente Melhor (Some Like It Hot), em que Tony Curtis e Jack Lemmon são dois músicos de Chicago que, para fugir de mafiosos durante a Lei Seca, se disfarçam de mulheres e se juntam a uma banda de jazz feminino em turnê para a Flórida. No trem, vão conhecer Sugar Kane Kowalczyk, a sensual cantora encarnada por Marilyn Monroe. em um de seus últimos trabalhos antes de morrer, em 1962, com apenas 36 anos. Billy Wilder disputou os Oscar de melhor diretor e roteiro.
Se Meu Apartamento Falasse (1960)
Wilder ganhou três Oscar com esta comédia dramática que retrata, com sensibilidade ímpar, a solidão urbana. Jack Lemmon interpreta um corretor de seguros de Nova York que descobre uma maneira inusitada de subir na vida: emprestar o apartamento aos seus superiores para noites de amor proibidas. O problema é que ele se apaixona pela ascensorista (Shirley MacLaine) que tem encontros com o chefe do seu escritório (Fred MacMurray). Se Meu Apartamento Falasse (The Apartment) também levou os Oscar de melhor edição e de direção de arte em preto e branco, além de concorrer nas categorias de ator, atriz, ator coadjuvante (Jack Kruschen), fotografia e som. Jack Lemmon e Shirley MacLaine (novamente indicada ao Oscar) reprisam sua parceria em Irma La Douce (1963), agora em Paris, onde um policial careta envolve-se com prostituta.