Talvez esta coincidência não estivesse nos planos de Christopher Nolan. Previsto para estrear nos cinemas dos Estados Unidos em 12 de agosto (dia 27 do mesmo mês no Brasil), Tenet, seu próximo filme, representa o sonho de uma bem-sucedida retomada do mercado em meio à pandemia de coronavírus. Hollywood aposta as fichas no diretor britânico porque ele costuma intrigar e seduzir público e crítica em obras que são produzidas pensando na tela grande – o objetivo é sempre ampliar a imersão do espectador.
Antes disso, na próxima quarta-feira (15), os fãs de Nolan podem celebrar o décimo aniversário de um filme que é justamente sobre sonhar: A Origem (Inception), disponível na Netflix.
Vencedor de quatro Oscar (melhor fotografia, por Wally Pfister, efeitos visuais, edição de som e mixagem de som) e indicado a outras quatro estatuetas (incluindo melhor filme e roteiro original, do próprio Nolan), A Origem conquistou, simultaneamente, bolsos e cabeças – um fato raro, convenhamos. Arrecadou US$ 828,3 milhões abordando temas que são um prato cheio para psicanalistas: a interpretação dos sonhos. Os arquivos secretos nos escaninhos da mente. As projeções que fazemos de quem nos cerca e de nós mesmos. Os pontos de fuga em um mundo interior. A engenharia da identidade. A tênue fronteira entre memória e imaginação. Os mecanismos de defesa do inconsciente. A culpa que atormenta a consciência. A realidade como uma construção mental.
Às vésperas de completar 50 anos (no dia 30 de julho), Nolan é um craque em combinar o suspense de entretenimento com o convite à reflexão. Vide, por exemplo, Amnésia (2000, também em cartaz na Netflix), que discute de que são feitas e para que servem nossas lembranças, o quanto elas são reais ou interpretações; O Grande Truque (2006, Google Play), que se debruça sobre a própria magia do cinema, a arquitetura do mistério, a arte de fazer o espectador prestar atenção em uma coisa enquanto o que realmente importa é outra coisa; e Batman – O Cavaleiro das Trevas (2008, no Now, no HBO Go e Google Play), que alterna cenas trepidantes com debates sobre temas perenes (o que é um herói e o que separa o Bem do Mal, por exemplo) e dilemas modernos (os riscos de combater o crime com extremismo).
Síntese da carreira
A Origem retoma – sintetiza, melhor dizendo – obsessões temáticas e estilísticas na filmografia do cineasta, como o quanto de nossas lembranças são fabricações e o lado sombrio de cada um. Nolan reflete sobre o poder da ilusão e da teatralidade, a exemplo de O Grande Truque, sobre a rivalidade entre dois mágicos, e, depois, de Batman Begins (2005, Netflix), em que recontou a origem do super-herói meditando sobre seu próprio trabalho como diretor de cinema.
Também se faz presente a manipulação do tempo narrativo, algo que lhe deu fama no engenhoso Amnésia, contado de trás para frente, mas que já havia sido ensaiado na sua obra de estreia, Following (1998, inédita no Brasil), que, de forma não linear, apresenta uma mesma sequência em momentos diferentes. Ele aprimorou esse recurso em Dunkirk (2017, disponível no Telecine e no Now), em que a oscarizada edição intercala três distintos arcos temporais (uma semana, um dia e uma hora), que gradativamente vão convergindo para um clímax simultâneo, na Segunda Guerra Mundial.
E o quebra-cabeças parece ainda mais promissor no vindouro Tenet, em que o protagonista encarnado por John David Washington (de Infiltrado na Klan) "viaja através de um mundo crepuscular de espionagem internacional em uma missão que vai se desdobrar em algo além do tempo real", como diz a propositadamente confusa sinopse oficial, com a suposta habilidade de retroceder algo que sequer aconteceu ainda. A "inversão temporal" é uma maluquice que casa com o título do filme, um palíndromo – palavra que pode ser lida tanto da direita para a esquerda quanto da esquerda para a direita.
Ladrões ao contrário
Mas voltando à A Origem: como a reforçar essa ideia de síntese da carreira, Nolan também recruta muitos de seus fiéis colaboradores, como o diretor de fotografia Wally Pfister (sete filmes com ele), o editor Lee Smith (seis), o compositor Hans Zimmer (seis) e os atores Michael Caine (sete) e Cillian Murphy (cinco).
O protagonista, no entanto, é novo no time. Na sua única parceria com o diretor, Leonardo DiCaprio vive um papel parecido com o que desempenhara em seu longa anterior, Ilha do Medo (2010, Netflix e Amazon Prime Video). Tanto na obra de Martin Scorsese quanto na de Christopher Nolan, o ator americano encarna um sujeito que transita em um mundo de limites borrados entre a realidade e a fantasia. Em ambos, é acossado por sonhos envolvendo sua mulher – aqui, apropriadamente chamada de Mal e interpretada pela francesa Marion Cotillard.
DiCaprio é Dom Cobb, um ladrão de sonhos – um Extrator. É capaz de penetrar na mente das pessoas enquanto elas estão dormindo para roubar segredos industriais. Novamente, vale pensar em como A Origem sumariza a obra de Nolan: Cobb é o nome de um dos personagens principais de seu primeiro filme, Following, também um ladrão que invade não a mente, mas a casa de estranhos, onde rouba pequenos objetos pessoais e muda coisas de lugar, no intuito de que as vítimas percebam e passem a sentir falta do que perderam.
Para o bem de A Origem, a tecnologia que permite a invasão de sonhos não é bem esclarecida, algo que desviaria o foco do viés psicanalítico. Mas os personagens, ao longo do filme, dão muitas explicações a respeito da trama e de seus atos – talvez desnecessárias, talvez insuficientes. Esse universo onírico não é nada pacífico, pelo contrário. Há tiroteios, perseguições e explosões. Projeções tomam a forma de capangas armados, e um trem desgovernado simboliza o perigo do inconsciente.
M.C. Escher e mitologia grega
O sucesso de Cobb exige um preço alto: ele se tornou um fugitivo internacional, um sujeito impedido de voltar para casa. Como em qualquer filme de bandido, o protagonista tem a chance de se redimir com "um último trabalho". Como em qualquer filme de bandido que pretende transcender o gênero, esse one last job é mais do que meramente um plano audacioso.
Cobb é recrutado não para um furto, mas para o oposto: uma inserção (a inception do título original), ou seja, plantar uma ideia na cabeça do herdeiro de uma megacorporação, Robert Fischer (Cillian Murphy). Precisa transformar uma emoção em uma decisão racional.
Para a missão, Cobb e seu parceiro Arthur (Jospeh Gordon-Levitt, de 7500) devem convocar uma equipe que inclui um Arquiteto, o responsável por fabricar o cenário onírico, que deve ser o mais labiríntico possível – quanto mais difícil o caminho de volta, mais a vítima custa a acordar. A citação explícita é à obra do artista gráfico holandês M.C. Escher (1898-1972), autor de gravuras complexas que traem o olhar e propõem arranjos e movimentos que desafiam a lógica e a gravidade. E, em uma citação à mitologia grega, Nolan batizou essa personagem, vivida por Ellen Page, de Ariadne, aquela que ajudou Teseu a escapar do labirinto do Minotauro. (Há outras tantas referências e ecos em A Origem, do clássico filme O Ano Passado em Marienbad, de Alain Resnais, a, claro, Sigmund Freud, o pai da psicanálise).
Ariadne também será, digamos, a projeção do espectador – fazendo as perguntas que gostaríamos de fazer – neste filme em que os personagens sonham dentro do sonho, neste filme que faz lembrar os versos de Raul Seixas: "Sonho que se sonha só é só um sonho que se sonha só. Mas sonho que se sonha junto é realidade".
Fenômeno na internet
O sucesso de A Origem não foi medido apenas pelas bilheterias, pelas oito indicações ao Oscar (e quatro ao Globo de Ouro) e pela recepção da crítica (no agregador Rotten Tomatoes, 87% dos 353 textos compilados são favoráveis). Vale lembrar do barulho que o filme causou na internet, só comparado, à época, ao que houve em torno do seriado Lost (encerrado no mesmo ano de 2010). Multiplicaram-se teorias explicativas sobre o final do filme de Christopher Nolan, mapas mostrando os vários níveis de sonho pelos quais os personagens transitam, debates sobre os mais ínfimos – ou não – detalhes (como o pião e o anel de noivado de Cobb) e até experiências sonoras: internautas diminuíram a rotação da canção Non, Je Ne Regrette Rien, usada na trama para anunciar o despertar do estado de torpor para a realidade, até o ponto em que ela parece se fundir com a trilha incidental composta por Hans Zimmer, como a sugerir que a todo tempo os personagens estivessem para ser acordados.
Sobre a canção, aliás, vale citar que ela é interpretada por Édith Piaf, que, por sua vez, foi encarnada no cinema por Marion Cotillard, que, por sua vez, em A Origem é a mulher de Cobb, e ele, por sua vez, ao contrário do que diz a letra em francês, vive no arrependimento.
Espelho do fazer cinematográfico
Especulações de fãs e interpretações psicanalíticas à parte, A Origem espelha o próprio ofício de fazer cinema. Seu enredo é basicamente o mesmo que envolve a produção de um filme: precisa-se de uma equipe para construir um sonho e alcançar corações e mentes.
O personagem Dom Cobb é o diretor – e Leonardo DiCaprio tem um tipo físico semelhante ao de Christopher Nolan, com os mesmos cabelos dourados que, em A Origem, estão armados no mesmo topete do cineasta britânico.
Arthur, o seu braço-direito, desempenha funções que, no mundo do cinema, equivalem às do diretor de fotografia e do montador, o sujeito que dá ritmo aos filmes – é o personagem de Joseph Gordon-Levitt quem cuida do enquadramento e da sincronia dos sonhos.
Ariadne, a nova arquiteta, é quem projeta os cenários e decora o estúdio do inconsciente.
Yusuf (Dileep Rao), o químico, pode ser visto como o cara dos efeitos especiais: depende de sua mágica para que os espectadores possam sonhar.
Saito (Ken Watanabe) é o produtor, o homem que entra com a grana e, por isso, se sente no direito de também entrar em cena.
E Eames (Tom Hardy) é exatamente o ator, que encarna um papel para "traduzir a razão (o roteiro, digamos assim) em conceitos emocionais", para cativar a audiência e inserir em sua cabeça/seu coração uma ideia/um sentimento.
Comigo, vocês que chegaram até aqui devem ter percebido, funcionou: ainda hoje, 10 anos depois, A Origem é um dos filmes dos meus sonhos.