Nem na hora do sono a pandemia sai da nossa cabeça. Ela só aparece de um jeito diferente. É isso que um grupo de pesquisadores do Instituto de Psicologia da UFRGS e de outras duas universidades brasileiras, USP e UFMG, estão estudando. Mais de cento e trinta sonhos já foram coletados em depoimentos de voluntários. Mesmo sem ter ainda organizado os resultados, as coordenadoras do estudo aqui no RS, as professoras Rose Gurski e Claudia Perrone, sugerem que a pesquisa abre um espaço para que a angústia deste momento seja sentida de maneira menos aniquiladora pelos sonhadores. O grupo também vê a possibilidade de tratar o momento histórico, provocando a imaginação coletiva em busca de outras interpretações para as vivências e experiências traumáticas do momento.
As pesquisadoras endossam ainda a noção de que temas como morte e destruição estão aparecendo mais enquanto os brasileiros dormem. O trecho do sonho de uma profissional de saúde, já incorporado ao material da pesquisa, serve de ilustração da realidade: "Tenho acordado diariamente no fim da madrugada, lá pelas quatro horas, bem apreensiva, após um sonho - ou pesadelo? - com a enfermaria do gripário, que alguns profissionais chamam também de covidário, local onde se encontram os pacientes internados com síndrome gripal aguda ou pneumonia viral , que inclui casos fortemente sugestivos de Covid-19. Ansiosa, desperto e sou dominada pela insônia. No último sonho, estava nos corredores da enfermaria e via que os pacientes estavam deitados nos leitos, frágeis e sem movimento, e eu caminhava para falar sobre o boletim médico com as famílias desses pacientes internados. Algo triste e cheio de sentimentos de tensão".
A pesquisa não parte de uma hipótese rígida. Serão as falas dos sonhadores que mostrarão a função do sonho e os efeitos do estudo. Este é o caminho da pesquisa psicanalítica, conforme explicam: "Um modo de não nos anteciparmos à experiência dos sujeitos, deixando que as narrativas apontem uma direção".
O projeto, que começou antes da pandemia com o nome "A oniropolitica em construção", coloca agora os "Sonhos em tempos de pandemia" como um dos focos do trabalho. A inspiração maior é o livro "Sonhos do Terceiro Reich", da jornalista alemã Charlotte Beradt. Entre 1933 e 1939, ela recolheu cerca de trezentos sonhos de alemães. A obra, que só veio à luz em 1966, mostra como a narrativa onírica dos entrevistados antecipou os horrores do nazismo, que chegariam ao ápice depois, com a eclosão da II Guerra Mundial.
O objetivo é concluir a pesquisa ainda esse ano. De acordo com Rose Gurski, essa é uma das dimensões mais importantes do projeto - abrir pontes e aproximar a pesquisa acadêmica da sociedade.