Desde quarta-feira (1º) presente no catálogo da Netflix, Pecados Íntimos (2006) foi o canto do cisne não oficial de um diretor que tinha potencial para ir bem mais longe. Afinal, com apenas dois filmes, o americano Todd Field concorreu – direta ou indiretamente – a oito Oscar.
Field havia trabalhado como ator no cinema – em títulos como A Era do Rádio (1987), de Woody Allen, e De Olhos Bem Fechados (1999), de Stanley Kubrick – e em seriados como Once and Again (interpretou David Cassilli) quando resolveu se lançar na direção, aos 37 anos. Logo na estreia, mereceu tapete vermelho – Entre Quatro Paredes (2001) disputou cinco Oscar: melhor filme, roteiro adaptado (pelo próprio Field a partir de um conto do escritor Andre Dubus), ator (Tom Wilkinson), atriz (Sissy Spacek, premiada no Gloo de Ouro) e atriz coadjuvante (Marisa Tomei). Também recebeu a aprovação da crítica (a National Board of Review escolheu-o como diretor do ano) e do American Film Institut, que lhe concedeu a segunda maior honraria individual, a medalha Franklin J. Shaffner.
O diretor demorou cinco anos para aparecer novamente, e de novo com um convite para a festa da Academia de Hollywood: Pecados Íntimos disputou as estatuetas de melhor atriz (Kate Winslet), ator coadjuvante (Jackie Earle Haley) e roteiro adaptado, assinado pelo próprio Field na companhia do escritor Tom Perrota, autor do romance em que o filme é baseado, Criancinhas (as Little Children do título original).
E então Todd Field sumiu.
De 2008 a 2016, houve rumores de que estaria envolvido em uma série de projetos, como um filme sobre a Revolução Mexicana estrelado por Leonardo DiCaprio e Christian Bale, outro sobre uma liga de beisebol dos anos 1970 e adaptações de obras de pesos-pesados da literatura dos Estados Unidos, como Cormac McCarthy, Joan Didion e Jonathan Franzen. Nada disso vingou.
O drama de guerra America's Last Prisoner of War, inspirado no caso real de um soldado, Bowe Bergdahl, sequestrado pelo Talibã e mantido preso de 2009 a 2014 no Afeganistão, foi anunciado e depois abandonado.
Em fevereiro de 2019, surgiu a notícia de que havia entrado em pré-produção The Creed of Violence, uma história sobre dois homens que, em 1910, à época da Revolução Mexicana, tentam desbaratar uma organização que contrabandeia armas. Mas surgiram dois imprevistos, um pessoal e o outro global: primeiro, o ator principal, Daniel Craig, sofreu, durante as filmagens de 007 – Sem Tempo para Morrer, no ano passado, uma lesão no tornozelo que demandou uma cirurgia e que atrasou sua agenda. Depois, bem, depois veio a pandemia de coronavírus, que paralisou a indústria do cinema. Sabe-se lá em que pé está o projeto.
Enquanto Todd Field, hoje com 56 anos, não reaparece, resta rever seus dois únicos filmes.
Ambos se passam em um subúrbio americano, onde a superfície serena mal esconde angústias e segredos familiares. Ambos afligem e perturbam. Mas também são lindos e tocantes.
O começo idílico de Entre Quatro Paredes (disponível em DVD) camufla a tempestade que está por vir. Mas é exatamente quando se formam as nuvens da desaprovação, do ciúme, da impunidade e do rancor que fica mais belo o filme.
A história abre-se com a perseguição amorosa de um casal em uma paisagem campestre. Deitados sobre a grama, banhados pelo sol, os dois manifestam, com poucas palavras, toda a felicidade que pode haver nessa vida.
Aos pouquinhos e de maneira encantadora, Field vai revelando seu cenário, seus personagens, sua trama. Estamos em Camden, uma pequena cidade do Maine sustentada pela pesca de lagostas. O rapaz é Frank (Nick Stahl), filho único do médico Matt Fowler (Tom Wilkinson) com a professora de canto Ruth (Sissy Spacek), ambos cinquentões, com quem o calouro de Arquitetura passa as férias de verão. A paixão de Frank é Natalie (Marisa Tomei), mãe de dois meninos e ex-mulher do intrusivo Richard Strout (William Mapother).
Uma tensão, de início quieta, vai surgindo, temperada por diferenças sociais e culturais. Há uma briga, da qual só vemos o antes e o depois. E então, ao fim do primeiro terço, vem a tragédia.
A dor do luto é retratada com comedimento. A convivência com um assassino acaba por ser mais insuportável do que a ausência da vítima. Vão-se os carinhos, os risos e a malícia do início do filme. Surgem o silêncio que condena, o gesto que não perdoa, os olhares que dizem tudo.
Pecados Íntimos tem como cenário um subúrbio de Boston, durante um verão escaldante. A temperatura é um combustível extra à bomba-relógio emocional que os ponteiros e as engrenagens das imagens iniciais deixam entrever. As bonecas de porcelana são outro símbolo, o da fragilidade dos personagens.
O conflito central é prontamente estabelecido. Uma repórter de TV retrata a controvérsia instaurada em uma vizinhança tranquila após a libertação de um homem de 46 anos que ficara preso por exibir sua genitália para uma criança. São afixados nos postes e distribuídos às famílias cartazes com o rosto do chamado "predador" – Ronnie, papel de Jackie Earle Haley, que fez a criança forçada pela mãe a ser a nova Shirley Temple no clássico O Dia do Gafanhoto, de 1975, e não atuava desde 1993 (depois, ele foi visto em filmes como Watchmen, Ilha do Medo e Alita e em séries como Alvo Humano, Preacher e The Tick).
Na sequência, o narrador da história (voz do ator Will Lyman) vai nos apresentar o par central. Ela é Sarah (Kate Winslet), casada e com uma filhinha, com quem frequenta uma pracinha onde finge para si mesmo ser uma espécie de antropóloga – só assim para aguentar as outras três mães suburbanas. Ele é Brad (Patrick Wilson), também casado, com uma documentarista interpretada por Jennifer Connelly, e pai de um gurizinho.
Charmoso e misterioso, recebeu daquelas três mães o apelido de Rei do Baile. Brad também finge, mas para sua esposa: à noite, quando vai à biblioteca do bairro, em vez de estudar para o exame da ordem americana de advogados fica admirando garotos skatistas, devaneando com sua adolescência perdida. O desespero sufocado de Sarah e o fracasso assumido de Brad vão aproximar um do outro.
Na manhã seguinte, Sarah ouve as três mães falando sobre o retorno de Ronnie às redondezas. "Ele deveria ser castrado, rápido e limpo!", prega uma delas. Daí, outra conta que seu irmão vivia se exibindo para ela. Sarah, ironicamente, sugere que ele, então, também deveria ser castrado. A mãe que defendeu a severa punição para Ronnie retruca:
— É diferente: ele não fazia isso com estranhos!
Esse universo de hipocrisia entra em polvorosa quando Ronnie começa a circular pelas ruas, saindo da proteção de sua devotada mãe. Ao mergulhar na piscina pública lotada de crianças, ele é visto como um tubarão na beira-mar. É o monstro a quem atribuímos todos os males do mundo e os nossos demônios interiores.
Como Entre Quatro Paredes, mas com um tanto de sarcasmo e cinismo, Pecados Íntimos provoca sensações de desconforto no espectador. Pressentimos o perigo das escolhas feitas por personagens que parecem incapazes de encarar a vida adulta, presos a impulsos de crianças pequenas.