Pureza, o quinto romance de Jonathan Franzen, que está sendo lançado agora no Brasil, se apresenta como um avanço no projeto literário declarado de seu autor: uma sátira à hipocrisia de boas intenções que passa de geração a geração. Hipocrisia que, no caso deste romance, deságua na atual juventude militante usuária de redes sociais e admiradora dos feitos de ciberativistas como Julian Assange. E em suas primeiras páginas o romancista americano de 57 anos até consegue administrar bem a ideia, fazendo parecer que está gestando seu melhor livro. Mas mesmo um escritor tão ligado à ideia de retratar a realidade tem dificuldade de destrinchar a anomia contemporânea, e a prova é que sua jovem protagonista parece mais um modelo de papelão e seu universo interior se mostra tão indecifrável para o próprio autor que ela é jogada para escanteio durante três quartos das mais de 600 páginas da narrativa.
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O romance começa com o foco em Purity Tyler, apelidada de Pip, jovem recém formada cuja vida financeira está paralisada pelas dívidas contraídas com o crédito estudantil. Ela trabalha sem vontade em uma firma de consultoria que se vende como desenvolvedora de políticas voltadas para o ambiente, mas que consegue apenas encarecer serviços e produtos e usar o excedente para manter a própria estrutura. Pip também mora com uma comunidade de anarquistas em um prédio a ponto de ser desapropriado, está obcecada por um homem mais velho e casado e é filha de uma excêntrica que nunca a deixou saber quem é seu pai – quando perguntada, conta apenas que era brutalizada pelo marido e precisou fugir com a filha, história que Pip descobrirá ter sido emprestada de um romance.
Pip é apresentada com minúcia por uma prosa fluente. Pode-se falar da pretensão de Franzen, de sua personalidade de tiozão ranzinza, mas, reconheça-se, ele transforma seus romances em leitura de grande entretenimento. Tanto a personagem quanto o romance começam empacados – as dívidas não desaparecerão, o trabalho continuará sendo um saco, a relação com a mãe não tem como se transformar em outra coisa sem um empurrão.
É um beco sem saída do qual Franzen escapa com um recurso que já havia usado antes em As correções: com uma proposta de viagem ao Exterior feita por um personagem convenientemente lançado na narrativa para sacudir seu estado de inércia. Pip é indicada, por meio de uma alemã chamada Annagret, hospedada na comuna, para trabalhar na América do Sul com o Projeto Luz do Sol, uma espécie de Wikileaks em modo turbo gerenciada por um ex-dissidente da Alemanha Oriental chamado Andreas Wolf.
A partir daí, Pip recua para o segundo plano, dando lugar a outros personagens em idas e vindas no tempo e no espaço. Meses depois de Pip haver aceitado a proposta de trabalhar no Luz do Sol, a reencontramos como estagiária de pesquisa em um site de jornalismo administrado pelo casal Tom e Leila. Um casal que tem seus próprios problemas, uma vez que Tom ainda não superou os traumas de uma relação vivida mais de duas décadas antes com uma aspirante a artista instável e controladora. Somos também admitidos no passado de Andreas Wolf, com um longo recuo até a queda do regime comunista na Alemanha Oriental.
Apenas nas seções finais do livro todas as narrativas dispersas se reúnem, em um grande coro de revelações que encobrem mentiras e omissões gigantescas da maioria dos personagens – muitas delas justificadas pela "pureza" das melhores intenções. Pureza é, em seu início, uma crítica ao caráter volátil da atual "comunidade das boas intenções" e sua organização em redes – que seriam de "solidariedade e esperança" para o sociólogo espanhol Manuel Castells, mas que se mostram de hipocrisia e ingenuidade no retrato pouco lisonjeiro de Franzen. O que provocou amplas críticas ao romance – no fundo, uma tese sobre a sociedade em rede como o resultado de omissões e enganos de utopias passadas e presentes.
A estrutura aparentemente dispersa que ganha unidade no conjunto não é de modo algum novidade no gênero romanesco, ou mesmo na carreira de Franzen – já estava presente em As correções e em Liberdade, seus trabalhos anteriores. O que ela representa aqui talvez seja o teste definitivo para a aplicação dessa estratégia no projeto literário de Franzen. Havia uma forma segura de manter a narrativa no controle nos livros anteriores, porque ambos enfocavam núcleos familiares e de amizade com laços muito próximos forjados ao longo do tempo. Em Pureza, embora haja tramas familiares de importância, as relações entre os personagens são distantes, por não haver, à primeira vista, conexão direta entre eles para além do acaso (ênfase no "à primeira vista"). E para conseguir essa conexão no novo livro, Franzen unifica seu amplo panorama lançando mão de uma trama intrincada e repleta de reviravoltas e coincidências quase burlescas – embora nada nelas sugira humor, mas seriedade.
Não seria problemático em um romance com uma proposta diferente. Mas para alguém tão apegado às virtudes do realismo como retrato do mundo, tais recursos parecem mal ajambrados, incapazes de sustentar mergulhos mais ou menos aprofundados em uma determinada situação. Franzen, grande observador, é um mestre na descrição de um cenário, mas não consegue neste livro imaginar motivações para além do caricatural quando se trata de dar voz às suas criaturas. Afinal, talvez seu grande projeto satírico contemporâneo não tenha, apesar da extensão de seus romances, espaço para personagens de verdade.
Pureza
De Jonathan Franzen.
Tradução de Jorio Dauster.
Companhia das Letras, 616 páginas, R$ 69,90 impresso e R$ 41,90 em e-book)