Há artistas cuja obra permanece viva mesmo após a sua morte. Há, mais do que isso, artistas que seguem instigando o público ainda que seu tempo de atividade tenha ficado no passado. E há Stanley Kubrick (1928-1999), cujo nascimento completa 90 anos na próxima quinta-feira (28/7).
O cineasta, um dos mais celebrados do século 20, assinou apenas 13 longas-metragens em vida, 10 deles entre as décadas de 1950 e 1970. Tido como perfeccionista, renegou o primeiro a ponto de dar sumiço em suas cópias – Medo e Delírio (1953) só ressurgiu graças à obsessão dos fãs, anos depois. Desenvolveu técnicas para atender a projetos específicos, incluindo lentes ultrassensíveis (para Barry Lindon, de 1975) e um tipo de steadycam, ou sistema de estabilização de câmera, para os célebres planos nos corredores do hotel de O Iluminado (1980).
Depois de títulos como Dr. Fantástico (1964), 2001, uma Odisseia no Espaço (1968) e Laranja Mecânica (1971), criou-se tamanha expectativa em torno de seus projetos seguintes que nem o próprio Kubrick, meticuloso ao extremo, sentiu-se confortável para realizá-los. Em alguns casos, claro.
O mais célebre desses casos é Napoleão, épico monumental tido como seu filme mais ambicioso que rendeu dois anos de trabalho – documentados no livro-álbum de nome sugestivo lançado pela Taschen: Stanley Kubrick’s Napoleon: The Greatest Movie Never Made ("o maior filme nunca feito", em tradução literal). Outro caso bastante conhecido é o de A.I.: Inteligência Artificial, projeto interrompido em fase embrionária que Steven Spielberg resolveu assumir logo após a morte de Kubrick, em homenagem ao amigo e ídolo – o longa acabou lançado em 2001, dois anos após a sua morte.
Mas há – cada vez – mais. No último domingo (15/7), o jornal britânico The Guardian noticiou que o professor universitário Nathan Abrams encontrara o que seria um roteiro inédito escrito pelo cineasta em 1956. O texto apareceu em meio a uma pesquisa que Abrams realizava para um livro sobre Kubrick. Estava na casa do filho de um de seus colaboradores (que preferiu não revelar sua identidade), junto a outros objetos deixados pelo diretor.
O roteiro, "praticamente finalizado", segundo o pesquisador, leva o título de Burning Secret. Trata-se, contou Abrams, de uma adaptação da novela homônima de Stefan Zweig (1881-1942), sobre um homem que manipula um garoto de 10 anos para conseguir seduzir a mãe dele. Teria sido escrita em conjunto com o romancista Calder Willingham (1922-1995), que dividiu com Kubrick o crédito do roteiro de Glória Feita de Sangue, filme de 1957.
– Já se sabia que ele tinha a intenção de filmar essa novela, mas ninguém achava que o roteiro estivesse tão desenvolvido. Agora temos uma cópia que prova que, sim, estava – disse Abrams.
A cópia é datada de outubro de 1956 e contém um selo dos estúdios MGM. Por que não foi levada adiante? Pode-se conjecturar a respeito. A MGM, que também desistiria de realizar Napoleão, pode ter desencorajado o diretor – algo que o próprio Abrams cogitou em entrevistas a outros veículos de imprensa europeus nos dias seguintes.
Ou o próprio Kubrick pode ter substituído esse filme por outro. Essa hipótese faz sentido: logo após Glória Feita de Sangue, ele assumiria a direção do épico Spartacus (que já estava em desenvolvimento e foi lançado em 1960) e, em seguida, dedicaria-se a Lolita (1962), adaptação da obra de Vladimir Nabokov (1899-1977) cuja temática contém alguma semelhança com Burning Secret – ambas as histórias envolvem uma criança e uma trama romântica a chocar a moral vigente nos grandes estúdios de Hollywood.
Segundo Abrams, o roteiro tem cem páginas. O texto descreve o personagem principal como "um predador sexual na casa dos 30 anos", "muito bonito e masculino". A força da figura masculina chama a atenção em Spartacus, também aproximando o filme não rodado com as realizações do cineasta à época.
É certo que as experiências com Spartacus e Lolita foram determinantes para Kubrick: no primeiro, ele não teve controle total sobre a produção, comandada pelos executivos da MGM; no segundo, enfrentou o moralismo do mainstream cinematográfico a podá-lo na chocante história nabokoviana do professor que se apaixona por uma adolescente.
O Kubrick que decidiu nunca filmar Burning Secret é o mesmo que, a partir daquele final dos anos 1950, início dos 1960, decidiu assumir o controle absoluto de seus projetos, deixando de lado algumas possíveis rusgas com produtores e, assim, tornando-se o cineasta obcecado que tantos fãs fascina até hoje, quase duas décadas depois de sua morte.