Na história do cinema, foram poucos os diretores obcecados pela técnica como Stanley Kubrick (1928 – 1999). E que, em função disso, tenham trazido contribuições tão marcantes para o desenvolvimento dos equipamentos usados no set de filmagens, vide as câmeras ultrassensíveis de Barry Lindon (1975) e o sistema steadicam desenvolvido para rodar O Iluminado (1980), entre outros exemplos.
O curioso – e paradoxal – é que, com sua visão pessimista peculiar, Kubrick usou essa expertise para... demonizar a tecnologia. Ao menos do ponto de vista sociológico, como deixam claro Laranja Mecânica (1971) e, sobretudo, a obra-prima Dr. Fantástico (1964). No intervalo de sete anos entre esses dois longas-metragens históricos, o mestre visionário realizou aquele que seria um dos maiores filmes já feitos: 2001 – Uma Odisseia no Espaço (1968).
De volta restaurado e digitalizado para exibição nos multiplexes atuais, 2001 terá sessões nesta terça-feira em todo o país na série Clássicos Cinemark (em Porto Alegre, a exibição será às 20h, no BarraShopping). É simplesmente "o" filme do enigma Kubrick: entre o deslumbre com as novidades tecnológicas e a análise da perversidade que estas trazem no pacote, configura-se um verdadeiro monumento da cultura do século 20 – muito mais rico em suas simbologias do que indicam os exercícios tolos sobre quais aspectos da vida no século 21 eram vislumbrados na década de 1960, quando 2001 foi concebido e realizado.
Precursor dos blockbusters e da "Nova Hollywood"
Dividido em três partes, 2001 é um título ensaístico, que mesmo com sua trama não linear cativou plateias ao redor do mundo – aqueles anos 1960 eram, também, um tempo em que esse tipo de longa, que ousa na forma e não subestima a inteligência do espectador, podia, sim, alcançar sucesso popular.
Suas duas bruscas quebras narrativas estão entre as maiores elipses já vistas. Enquanto a primeira parte anuncia a "alvorada do homem", milênios atrás, a partir da descoberta de que artefatos cotidianos como pedras e ossadas podem se transformar em armas, a segunda imagina um futuro sombrio, espécie de ocaso da humanidade, em que um computador (o célebre Hal 9000) tenta assassinar um astronauta em uma nave espacial (a criatura virando-se contra o criador). A terceira parte é um epílogo no qual vale a pena desembarcar sem maiores informações prévias.
Para além da visão em retrospectiva sobre a grande aventura humana – mediada pela tecnologia –, o cineasta apresenta algumas associações muito felizes entre som e imagem. É nada menos do que histórico o balé interestelar ilustrado pelo Danúbio Azul de Strauss. Foi concebido em um contexto de febre das ficções científicas e, além disso, do que alguns teóricos chamaram de crise da representação – esgotada a "fórmula" do cinema realista do pós-guerra, que caminhos seriam possíveis para a produção então chamada autoral? Antes do que viria a ser conhecido como a "Nova Hollywood" (inaugurada em 1969 com Easy Rider) e da era dos blockbusters (que começaria em 1975 com Tubarão), Kubrick encontrou um caminho, assinalando uma espécie de súmula do que seria a melhor produção norte-americana das décadas seguintes.
A cultura pop antes da cultura pop
Da mesma forma, antecipou-se à própria cultura pop criando imagens que adentrariam o imaginário coletivo das décadas seguintes, algumas destas, a exemplo do que passou a ocorrer com frequência nas ficções científicas mais queridas do público (Planeta dos Macacos, Star Wars), à mesma medida fascinantes e enigmáticas.
O caso mais radical, nesse sentido, é o do misterioso monolito que anuncia a passagem do tempo entre um ato e outro. O que aquele objeto não identificado representa? Muito já se discutiu e, provavelmente, muito se discutirá acerca dessa questão. Bobagem! Por mais que a subjetividade da fruição seja sempre guiada, algumas associações feitas pelo espectador são inevitavelmente livres.
O que importa, para além do visual asséptico, impressionante para a época, da trilha sonora erudita, climática, e da atuação brilhante do grupo de atores fantasiados de macacos, no fundo, é o panorama da grande odisseia do homem – que Kubrick formatou à luz de nossas descobertas, realizadas no passado e imaginadas no futuro, desde quando aprendemos a olhar para quem está perto até quando conseguimos imaginar o que está a galáxias de distância.
Aproveite que não é sempre que se pode descobrir um filme imenso como este na sala de cinema. Ou redescobrir: 2001 causa impacto sempre – na primeira, na segunda, na décima vez em que é visto.
Preste atenção
A atual temporada da série Clássicos Cinemark, que já exibiu E o Vento Levou (1939), tem nesta terça-feira 2001 – Uma Odisseia no Espaço (1968) e, na última semana de junho, O Mágico de Oz (1939). Mas fique atento: os filmes são exibidos em apenas um dia, em sessões por todo o país. Em Porto Alegre, você poderá ver 2001 apenas nesta terça (29/5), às 20h, no BarraShoppingSul (Avenida Diário de Notícias, 300, bairro Cristal), com ingressos a R$ 10.