Cinco meses. Cento e cinquenta dias. Três mil e 600 horas. Esses são os números que devem estar povoando a cabeça de muita gente: a turma que entrou em distanciamento social ali pela metade de março, quando o coronavírus pegou no Brasil.
Isolados em casa, encontramos nos filmes um passatempo constante, independentemente do estado de espírito. Se o negócio é rir, recomendo uma comédia espanhola que funciona com toda a minha família, incluindo as nossas filhas: Toc Toc (2017), em cartaz na Netflix. O longa de Vicente Villanueva é sobre seis pacientes com transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) que marcam consulta no mesmo horário com um psiquiatra, mas ele se atrasa muito e o grupo precisa esperar.
Entre os personagens, estão Federico (o ótimo Oscar Martínez), que tem síndrome de Tourette e solta palavrões e gestos obscenos involuntariamente, e Ana María (Rossy de Palma), que, sempre que sai de casa, volta para verificar se fechou mesmo a torneira, o gás, a porta... À primeira vista, a obra pode parecer politicamente incorreta, mas no fundo passa uma mensagem sobre duas coisas de que precisamos agora mais do que nunca: empatia e cooperação. E sem deixar de provocar gargalhadas.
Se você está a fim de um banho de adrenalina, daqueles que nos limpam das preocupações, a sugestão é mergulhar na ação frenética de Resgate (2020), filme disponível na Netflix e dirigido por Sam Hargrave – coordenador de dublês em uma série de títulos, como as duas partes de Jogos Vorazes: A Esperança, Esquadrão Suicida, Atômica e Deadpool 2, além das duas últimas aventuras dos Vingadores. O protagonista é Chris Hemsworth, o Thor do cinema. Ele interpreta Tyler Rake, um mercenário mais ou menos do bem e que afoga na bebida um drama particular. Como se nada mais na vida lhe atraísse, abraça o perigo, seja pulando de um enorme penhasco para uma lagoa na Austrália, seja aceitando trabalhos como salvar o filho adolescente de um traficante de drogas indiano, sequestrado a mando de um barão do crime da apinhada Dhaka, a capital bengali, sexta cidade com maior densidade populacional do mundo.
Durante o par de horas dessa missão quase impossível, projetamos em Tyler a fé e a esperança de que, no final, tudo vai dar certo. Nessa fantasia, tomamos como nossa a busca, ainda que turva, de redenção pelo personagem principal. Sob a guarda da ficção, nos permitimos a violência abominável na vida real, mas libertadora e até fascinante quando de mentirinha. Tipo um videogame, podemos inclusive matar – e o cruzamento desse limite moral é favorecido pela abundância de inimigos sem rosto, que se multiplicam como vírus que devemos eliminar para preservar a vida.
Agora, se a sua praia é mais reflexiva, que tal enxergar em alguns filmes pré-coronavírus as questões que a pandemia impôs ao mundo? Acho que o espanhol O Poço (2019) e o canadense O Declínio (2020), ambos na Netflix, cumprem bem esse papel – ainda que não sejam apenas reflexivos: há um tanto de terror e escatologia no primeiro, um tanto de violência e de sangue no segundo.
Assinado por Galder Gaztelu-Urrutia, O Poço se passa em um presídio vertical que espelhou a lógica da sobrevivência egoísta e a desigualdade social escancaradas pelo vírus. Quem está no topo consome sem se preocupar se vai sobrar comida, álcool gel ou papel higiênico para os demais. Em O Declínio, de Patrice Laliberté, um pequeno grupo de homens e mulheres vê seu treinamento para um desastre natural ou uma doença devastadora com um youtuber descambar para a tragédia quando um acidente acontece. Máscaras civilizatórias vão cair, instintos vão dominar as ações.
Há também os filmes anteriores à covid-19 que, de certa forma, oferecem a redenção de que todos estamos precisando – caso dos turcos Milagre na Cela 7 (2019) e Sadece Sen (2014). Disponíveis na Netflix, ambos são adaptações de obras da pujante cinematografia sul-coreana. Em Milagre na Cela 7, o diretor Mehmet Ada Öztekin conta a história de um pai solteiro e com atraso mental que é condenado à forca sob a acusação de ter matado a filha de um poderoso militar. Em Sadece Sen, Hakan Yonat acompanha as idas e voltas do romance entre um ex-lutador, que agora é vigia de um estacionamento, e uma operadora de telemarketing cega. Como as sinopses sugerem, os dois filmes podem demandar um pacotinho de lenços de papel para enxugar as lágrimas.
E existe um filme que parece atender a praticamente todos os estados de espírito. É a antologia de curtas-metragens Feito em Casa (Homemade, 2020), em cartaz na Netflix – escrevi sobre essa bela atração nesta coluna. Em 17 filmes, cineastas de diversas partes do mundo – o chileno Pablo Larraín, a americana Kristen Stewart, o italiano Paolo Sorrentino, a japonesa Naomi Kawase... – ora refletem sobre os efeitos da pandemia, ora retratam a vida no distanciamento social, ora injetam doses de ficção científica, ora são capazes de fazer rir à beça.