No Coração do Mar (2015), que entrou em cartaz na Netflix recentemente, não se pagou nas bilheterias: custou US$ 100 milhões, arrecadou US$ 97 milhões. Nem convenceu os críticos da América do Norte e do Reino Unido (suas avaliações estão abaixo de 50 no site Metacritic e no Rotten Tomatoes).
Mas o tempo fez bem ao longa-metragem assinado por Ron Howard – ganhador dos Oscar de melhor filme e de direção por Uma Mente Brilhante (2001) e indicado às mesmas categorias por Frost/Nixon (2008) – e estrelado por Chris Hemsworth e Tom Holland, o Thor e o Homem-Aranha do universo cinematográfico Marvel.
Baseado no livro homônimo lançado em 2000 por Nathaniel Philbrick, No Coração do Mar (In the Heart of the Sea) reconstitui a história real que inspirou o clássico literário Moby Dick (1851), de Herman Melville. O filme se passa em dois tempos. Em um deles, o próprio Melville (interpretado por Ben Whishaw), à procura de inspiração para seu livro, conversa com o último sobrevivente de um navio baleeiro norte-americano afundado por um cachalote gigante no Oceano Pacífico, na América do Sul, em 1820. Trata-se de Thomas Nickerson, vivido por Brendan Gleeson na fase adulta e por Tom Holland nos tempos de marinheiro.
O grosso da trama se dá no mar, é claro. Retomando a parceria com Ron Howard, que o dirigira no ótimo Rush: No Limite da Emoção (2013), Chris Hemsworth encarna o tarimbado Owen Chase, primeiro imediato da embarcação comandada por um capitão sem traquejo – George Pollard Jr. (Benjamin Walker) está no posto, basicamente, por ser um filhinho de papai. A tripulação inclui, entre outros personagens, Matthew Joy (Cillian Murphy), um antigo companheiro de Chase, e Henry Coffin (Frank Dillane), primo do capitão.
O primeiro conflito ocorre entre os dois principais oficiais, o típico choque entre o inexperiente na posição de liderança e o experiente na condição de subalterno. Chase, que há anos espera a chance de ser capitão, precisa engolir seu orgulho e adiar por mais uma viagem o sonho de uma vida melhor ao lado da esposa, que está grávida. Pollard, por sua vez, quer provar para o pai e para si próprio do que é capaz. A obsessão – o grande tema de Moby Dick – torna-se o ponto em comum entre os dois homens: ambos querem caçar e matar a enorme baleia que surge tragicamente na rota do Essex.
Essa caçada é movida não apenas por um sentimento de vingança, mas também por motivos econômicos: no século 19, até o advento da indústria petrolífera (o primeiro poço comercial nos Estados Unidos foi perfurado em 1859), o óleo de baleia servia como combustível para iluminar casas e ruas, além de ser usado como lubrificante e na fabricação de produtos como sabão e margarina. Ou seja, em nome do progresso da civilização, o homem adotou a barbárie contra o mundo animal.
Daí que, nesse tipo de obra, minha torcida seja sempre pela baleia. E, embora os efeitos visuais de No Coração do Mar retratem o cachalote como um monstro, esse cetáceo não é exatamente o vilão da história. Está apenas agindo em autodefesa, mesmo que isso signifique provocar dor e morte. Aliás, ainda que um diretor menos certinho do que Howard pudesse tirar mais proveito da situação, não faltará sofrimento e privações aos tripulantes do Essex, enredados, por fim, a dilemas morais quando os dias à deriva se multiplicarem e o horizonte não der mais esperança.
É por isso que o surgimento tardio na Netflix parece ser positivo a No Coração do Mar. O contexto de uma pandemia é propício para narrativas sobre a luta por sobrevivência, sobre o embate entre o homem e a natureza, sobre escolhas difíceis e decisões precipitadas, sobre honra e juízo versus arrogância e ganância. E tanto melhor que isso seja contado com um visual fascinante, cenas assombrosas e alguns atores carismáticos.