Houve um filme, produzido com poucos recursos na era do cinema mudo, que simbolizou a angústia existencial do homem moderno, anteviu o horror do nazifascismo e prenunciou figurações que marcariam a melhor produção de gênero ao longo de um século. Um único filme. Chamou-se O Gabinete do Dr. Caligari. Teve sua première mundial há cem anos, em Berlim, em fevereiro de 1920.
Um mérito perceptível logo de cara foi como a equipe do diretor Robert Wiene – sobretudo o fotógrafo Willy Hameister e os diretores de arte Hermann Warm, Walter Reimann e Walter Röhrig – estabeleceu conexões com linguagens consolidadas, fazendo com que a ainda jovem arte de fazer filmes desse um salto evolutivo e atraísse olhares da intelectualidade até então convencida de estar diante de uma “arte menor”.
O cinema já era e continuaria sendo um espetáculo, mas, Caligari ajudou a mostrar, não apenas isso. Convém lembrar que a expressão “sétima arte” recém havia surgido (é atribuída a Ricciotto Canudo, em textos da década de 1910) e que as primeiras teorizações mais consistentes sobre a linguagem ainda eram, no mínimo, incipientes (dariam um salto nos anos 1920). Mal o longa-metragem havia se firmado como formato padrão da indústria, e lá estavam os alemães, saídos há poucos meses arrasados da Primeira Guerra Mundial, sem maiores indícios anteriores de consolidação de uma cinematografia forte, como já eram as de França e EUA, lançando um filme que absorvia elementos das vanguardas artísticas para ilustrar uma narrativa repleta de simbolismos significativos como retrato de uma época.
A história do psiquiatra disfarçado de diretor de espetáculos Caligari (interpretado por Werner Krauss) que usa uma criatura hipnotizada (Conrad Veidt) para cometer assassinatos é uma alegoria do tiranismo que se espalhou pela Europa tendo como epicentro o nazismo de Hitler. Foi escrita por Carl Mayer e Jans Janowitz com base nas experiências traumáticas do primeiro durante a guerra e em um show de variedades que o segundo viu em um parque de Berlim. A própria construção da memória da produção foi comprometida após os anos sombrios que se seguiram na Alemanha, mas pesquisas como a de David Robinson, no livro O Gabinete do Dr. Caligari (lançado no Brasil em 2000, três anos após a publicação original), ajudaram a esclarecer que o roteiro não trouxe especificações para a revolucionária concepção visual, principalmente de cenografia, que lançaria a onda expressionista no cinema. Foram Warm, Reimann e Röhrig que vislumbraram as formas geométricas distorcidas e fantasmagóricas para simbolizar os tormentos do homem manipulado pelo tirano personagem-título.
Mayer e Janowitz venderam o roteiro a Erich Pommer, da produtora Decla-Bioscop, mas o início dos trabalhos não foi simples. Havia resistência interna na Decla-Bioscop, ancestral da UFA, que seria responsável pela porção audiovisual da propaganda nazista, como apontou o próprio Warm na obra referencial De Caligari a Hitler, de Siegfried Kracauer (lançado em 1947). Tanto que os então jovens e promissores Fritz Lang e F.W. Murnau, que haviam estreado como diretores em 1919, chegaram a retrabalhar o texto original de Mayer e Janowitz. Lang seria o diretor, o que não ocorreu porque Wiene, um tantinho mais experiente, inclusive em obras de fantasia (estreara como diretor em 1913), acabou escolhido por Rudolf Meinert, que assumiu a produção executiva do projeto. Não fosse a persistência de Meinert, apontou Warm, O Gabinete do Dr. Caligari talvez não tivesse existido.
Lang desistiu do projeto porque, junto ao roteiro, foi-lhe entregue um croqui com esboços de “cenários cubistas”, como ele descreveu em carta de 1970 (reproduzida no livro de David Robinson), o que, ele acreditava, “uma plateia de cinema não entenderia”. A ousadia já tinha as assinaturas do trio Warm-Reimann-Röhrig, e parece correto crer que as mudanças do texto original de Mayer e Janowitz, notadamente as inserções de um prólogo e um epílogo, assim como a troca na direção do filme, deveram-se a incertezas quanto a esse arrojo visual e à provocação contida na trama – o que significaria tal metáfora sobre um líder que enlouquece e manipula um sujeito a ponto de levá-lo a cometer crimes?
Uma resposta foi sabiamente formulada por Kracauer a partir da ideia de que um filme, graças às especificidades da linguagem do cinema, é capaz de desvelar características da época em que foi realizado mesmo que estas não estejam relacionadas ao enredo em si. “Os filmes de um país refletem a mentalidade desse país de forma mais direta do que outros meios artísticos”, escreveu, em De Caligari a Hitler. “Mais do que crenças explícitas, o que os filmes refletem são tendências psicológicas, extratos profundos da mentalidade coletiva que correm por debaixo da dimensão da consciência”, prosseguiu. A repetição do verbo “refletir” é fundamental: não se trata de apresentar, sugerir ou indicar – o que um filme grandioso como este faz é deixar ver, como se fosse um espelho da alma, aquilo que está invisível a olho nu, mas cuja capacidade de impactar os acontecimentos é gigantesca. Não é por pouca coisa que se trata de um dos maiores filmes já realizados.