Federico Fellini realizou o mais icônico dos filmes memorialísticos – Amarcord (1973). Foi o autor da obra-prima de seu tempo sobre os impasses criativos do artista – 8 1/2 (1963). Talvez nenhum outro longa-metragem sintetize tão bem a modernidade cinematográfica, em sua forma fílmica e suas premissas filosóficas, como A Doce Vida (1960), que o cineasta escreveu e dirigiu ao completar 50 anos. Nesta segunda-feira (20/1), seu nascimento contará um século. E Fellini segue sendo um dos maiores artistas do mundo, por mais que técnicas se renovem, questões de interesse coletivo se atualizem e reavaliações se sucedam.
Quando alguém fizer seu filme memorialístico, terá o “seu Amarcord”. Quando se expuser em suas dificuldades para criar, terá o “seu 8 1/2”. Esse posto de referência foi alcançado com uma trajetória coerente, pautada por uma pesquisa de linguagem que resume a própria modernização do cinema, uma arte que nasceu graças a invenções tecnológicas e seduziu multidões pela capacidade de fazer sonhar, descolando-se do mundo real, mas que, para ampliar as possibilidades de representação da realidade, teve de lançar um olhar ao cotidiano comezinho, direcionado às nossas mazelas sociais e psíquicas.
É importante lembrar que, antes de ser o Fellini delirante da maturidade – aquele que justifica a alcunha “felliniano” –, o cineasta alinhou-se ao Neorrealismo, movimento que revolucionou a linguagem para abordar as ruínas físicas e morais da Europa do pós-guerra. Seus primeiros filmes valorizam o desajuste tratando da errância (seu grande tema e, talvez, o grande tema de todo o cinema moderno) pela via da ternura, basta lembrar a força delicada das inesquecíveis personagens de Giulietta Masina em A Estrada da Vida (1954) e Noites de Cabíria (1957).
O olhar generoso para os oprimidos prosseguiu, mas algo mudou com A Doce Vida. Nesse filme, passo decisivo para esculpir o Fellini extravagante das últimas décadas, o errante protagonista (Marcello Mastroianni) tem a inocência roubada, porém, não do mesmo modo que Cabíria e Gelsomina (de A Estrada da Vida). Marcello Rubini é vítima e também agente ativo de uma degradação que é moral mas que rejeita o moralismo mais tacanho – como que admitindo a impossibilidade de solução diante da encruzilhada do homem contemporâneo, dividido entre o desejo individual e o sentido de comunidade, a lógica da razão e o apelo do espírito, a potência do sonho e a inescapabilidade do real. É por isso que faz sentido falar em amadurecimento: com A Doce Vida, sumiram os últimos resquícios de uma visão maniqueísta ante esses dilemas.
Parece natural que, para o artista que se propõe a buscar respostas nesse contexto, as representações realistas façam menos sentido do que a fantasia. Fellini chegaria lá não sem antes tornar públicas essas inquietações, superando recalques e usando o exercício criativo como uma terapia – o que culminou com 8 1/2, um dos maiores filmes de todos os tempos.
Dali por diante, parecia não haver limites para sua imaginação. O caráter onírico cresceu progressivamente a partir de Julieta dos Espíritos (1965), tornando-se mais palpável quando os temas apareceram com mais clareza. Paradoxalmente, Amarcord e também Roma (1972), egotrips desveladoras dos delírios mais profundos do artista, constituem dois dos filmes mais aclamados de toda a sua trajetória.
É para pensar a respeito: a profundidade do devaneio e a desconexão com a realidade não limitam a compreensão do espectador – pelo contrário. Isso porque, pode-se conjecturar, sua busca – devidamente antecipada em A Doce Vida e 8 1/2 – é por uma representação do falso. Todos, e não só Casanova (1976), usam máscaras sociais, parece reiterar Fellini. Juntos, constroem uma sociedade de aparências, propósitos escondidos, desejos reprimidos, recalques acumulados. E estão representados pelo excesso porque é o excesso que dá a ver o que está oculto.
A última obra-prima, E la Nave Va (1983), começa com uma sequência em tons de sépia, remetendo ao passado mas conectada ao colorido (exagerado) que se verá a seguir e que é representativo do tempo presente – o presente do cinema, que por sua vez é passado, embora atualizado na fruição. Esse filme, por sua vez, é sintético da trajetória do artista, que começou neorrealista e que, no decorrer dos anos, tornou-se marcadamente surreal. Nem quando, ao final, Fellini revela os bastidores de sua encenação (em uma sequência que mostra técnicos jogando fumaça no cenário, por exemplo), ele deixa de evidenciar que sua busca é o que está além das aparências: por trás de toda a fantasia, despida das maquinações e maquiagens inerentes ao cinema, a imagem que surge é a de uma enigmática figura filmando o jornalista-narrador (Freddie Jones) a dividir um bote salva-vidas, após um naufrágio, com um... rinoceronte.
Havia coisas que só Fellini via. Removidas as máscaras, no entanto, fica claro que tudo está lá. Tudo está aqui, ao nosso lado.