O cinema nunca mais foi o mesmo depois de Acossado. O longa-metragem de estreia de Godard foi lançado em 1960, um ano após o furor causado por Os Incompreendidos (de Truffaut) e Hiroshima Meu Amor (de Resnais) no Festival de Cannes, mas acabou se tornando o filme-manifesto da Nouvelle Vague. Sua volta a cartaz, em cópia restaurada, a partir desta quinta-feira (8/2), no Espaço Itaú, em Porto Alegre, oferece a oportunidade de entender, plano a plano, diante da tela grande, o passo definitivo na modernização da linguagem cinematográfica.
O enredo é simples e está sintetizado em um fotograma icônico da cultura pop: Michel (Jean-Paul Belmondo) é um criminoso obcecado por Humphrey Bogart que rouba um carro, mata um policial e vai a Paris, onde conhece a garota norte-americana Patricia (Jean Seberg), que veste uma camiseta do New York Herald Tribune para vender jornais na Champs-Élysées. Mas a trama, escrita por Truffaut, nem importa tanto. O que entrou para a história foi a forma como Godard a contou.
Aproveitando-se da premissa de filme de ação, o cineasta franco-suíço usou planos muito curtos e uma montagem acelerada, que quebrou um princípio apregoado pelo cinema clássico – o da chamada montagem invisível. Em Acossado, os cortes bruscos chamam a atenção do espectador, que vê a técnica por trás da ação e é instigado pelo estranhamento que isso causa. A sobreposição de imagens soa ainda mais ostensiva porque Godard e a montadora Cécile Decugis não evitam o chamado jump-cut, ou seja, o salto que parece haver quando duas tomadas subsequentes mostram a mesma cena, os mesmos objetos ou o mesmo personagem a partir de uma angulação aproximada.
A tradicional escola inglesa de documentários e o cinema-verdade que ganhava corpo à época ajudaram a desmistificar o "problema" do jump-cut. Mas Acossado proporcionava uma experiência mais radical, afinal, era uma ficção. Quem disse que tem de ser de um jeito ou de outro? – era a pergunta que Godard parecia fazer.
A provocação deu certo porque, ao contrário do que pode parecer, não se trata apenas de um blablablá tecnicista: essa opção tem influência marcante no processo de subjetivação por parte do espectador, na medida em que a noção de continuidade de tempo se dá justamente pela transição entre os planos. É uma questão de filosofia da imagem, que Godard aprofundaria a partir dali em uma das obras mais sólidas da história do cinema.
É importante lembrar que a modernização da linguagem se deu em um processo que data, pelo menos, dos anos 1940 e que tem em Orson Welles e Hitchcock, além dos filmes italianos do pós-guerra, os seus protagonistas. A introdução do flashback, da profundidade de campo e dos planos estendidos, entre outros recursos, abriu novas possibilidades de entender a relação espaço-tempo nos filmes. Faltava radicalizar a mudança. Faltava Godard.
As descontinuidades de Acossado instigam um novo tipo de percepção – e, consequentemente, uma sensação de realidade diferente. O tempo, em Godard, é indeterminado. É múltiplo. E os gêneros também, contrariamente ao que havia sido estabelecido pelo cinema clássico. Daí porque, como escreveu Glauber Rocha (em um ensaio sugestivamente intitulado Você Gosta de Godard? Se Não, Está por Fora), "Godard é o máximo de coisas no mínimo de tempo".
Acossado é bem mais do que um longa de ação, ou de aventura, ou policial. É uma porta aberta a tudo o que a linguagem pode oferecer, dos superblockbusters contemporâneos, com seu ritmo frenético, à construção estética livre dos vídeos curtos das redes sociais. Você já percebeu, por exemplo, o quanto as postagens dos youtubers são marcadas pelo uso de jump-cuts?
São raros os filmes sobre os quais se pode dizer a frase que abre este texto. Acossado é um deles.
ACOSSADO
(À Bout de Souffle)
De Jean-Luc Godard. Com Jean-Paul Belmondo e Jean Seberg.
Ação/policial/drama, França, 1960, 90min.
Prêmio de melhor direção no Festival de Berlim.
Em Porto Alegre, em cartaz no Espaço Itaú 6, diariamente, às 16h50min.