O dia chegou.
Até então imbatível nas listas de melhor filme de todos os tempos, eis que Cidadão Kane saiu do topo. Ao menos no tradicional levantamento do British Film Institute (BFI), feito com críticos a cada 10 anos, o novo campeão é Um Corpo que Cai. Em seis décadas, é a primeira vez que Kane é desbancado.
Teria a obra-prima de Orson Welles perdido força com o tempo? Estaria o culto a Hitchcock, que teve início com a nova onda francesa dos anos 1950 e 60, fortalecido entre as gerações mais jovens? Por que este filme do mestre do suspense e não Psicose, Interlúdio ou Intriga Internacional? E por que não O Encouraçado Potemkin ou O Poderoso Chefão, principais "ameaças" a Kane em tantas listas passadas e inclusive na mais recente do American Film Institute (AFI), de 2007?
Algumas respostas - e outras perguntas - começam a aparecer por aí. Roger Ebert, o mais popular crítico norte-americano, votante na lista do BFI, disse em seu blog que já esperava a renovação, tendo em vista a gradual ascensão de Um Corpo que Cai (Vertigo, no original). Dez anos atrás, a diferença entre o 45º longa de Hitchcock e o primeiro de Welles era de cinco votos. Isso num universo de 846. Agora, o filme estrelado por Kim Novak e James Stewart roubou a liderança e abriu 34 votos de distância - 191 a 157, contra 107 do terceiro colocado (Tokyo Story).
- Penso que uma das razões possíveis da queda de Cidadão Kane seja uma espécie de esgotamento. Depois de meio século dizendo que ele é o maior título de todos os tempos, os críticos se cansam e se voltam para outros trabalhos igualmente extraordinários - avalia o crítico brasileiro José Geraldo Couto, lembrando também que há uma natural renovação da crítica e dos próprios realizadores. - Truffaut dizia que Kane era o filme que mais tinha inspirado novos cineastas. Mas as gerações que sofreram essa influência estão acabando, e para as novas gerações as suas inovações já são moeda corrente.
Não custa reafirmar o quão revolucionária foi a estreia de Orson Welles - algo que não se pode dizer do longa de Hitchcock, como pontua Luiz Zanin Oricchio, presidente da Associação Brasileira dos Críticos de Cinema (Abraccine):
- Eu jamais tiraria Kane da primeira posição, embora considere Um Corpo que Cai a obra-prima de Hitchcock. Ok. Só que Kane é muito mais inovador e completo. O que houve, a meu ver, é efeito da revalorização de Hitchcock por Truffaut e o pessoal da nouvelle vague. De alguma forma, esse trabalho crítico dos franceses mudou a posição de Hitchcock no ranking da crítica e esse efeito passou para novas gerações que, curiosamente, sentem-se ligadas mais ao pensamento da nouvelle vague do que a tendências concorrentes.
O olhar apaixonado da nova crítica para com os filmes e as ideias do cinema francês pós-Acossado é perceptível, e talvez não se repita com tanta intensidade entre os cineastas. Na lista paralela que o BFI fez apenas com a votação dos diretores (358 no total), Tokyo Story lidera. Kane e 2001 - Uma Odisseia no Espaço estão empatados em segundo. Um Corpo que Cai é o sétimo, ao lado de O Poderoso Chefão e atrás de 8 ½ (que é o quarto), Taxi Driver (o quinto) e Apocalipse Now (sexto).
- É grave, a meu ver, um filme como Encouraçado Potemkin aparecer apenas na 11ª posição, o que indica desvalorização do cinema político. Talvez esta desvalorização se reflita também na omissão da obra-prima de Chaplin Tempos Modernos entre os 50 melhores - diz Zanin.
Professor e crítico em São Paulo, Sérgio Rizzo considera "mais reveladora" a ascensão de Um Corpo que Cai do que a queda "ligeira, ligeiríssima" de Cidadão Kane:
- Este movimento confirma o elevado prestígio de Hitchcock, espécie de representante de um "esperanto" do cinema, capaz de agradar a especialistas e a uma grande massa de espectadores, inclusive jovens, como demonstrou o público da retrospectiva de sua obra e dos cursos em torno dela realizados em 2011. Ministrei um desses cursos, na Casa do Saber, e cerca de metade da turma que foi estudar Hitchcock tinha menos de 30 anos.
O novo ranking do British Film Institute (BFI):
1. Um Corpo que Cai, de Alfred Hitchcock (1958)
2. Cidadão Kane, de Orson Welles (1941)
3. Tokyo Story, de Yasujiro Ozu (1953)
4. A Regra do Jogo, de Jean Renoir (1939)
5. Aurora, de F.W. Murnau (1927)
6. 2001 - Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick (1968)
7. Rastros de Ódio, de John Ford (1956)
8. O Homem da Câmera, de Dziga Vertov (1929)
9. A Paixão de Joana dArc, de Carl Theodor Dreyer (1927)
10. 8 ½, de Federico Fellini (1963)
:: "Cidadão Kane" saiu do topo, mas segue em alta