Apaixonado praticante do cinema fantástico, o diretor mexicano Guillermo Del Toro consagrou para além do nicho de fãs do gênero o talento de espelhar no universo fabular temas complexos do mundo real. Os dois filmes que marcaram sua projeção internacional, por exemplo, tiveram como pano de fundo histórico a Guerra Civil na Espanha (1936-1939): A Espinha do Diabo (2001) e O Labirinto do Fauno (2006). Em ambos, Del Toro manipulou as chaves do suspense e do horror para exumar traumas e fantasmas daquele sangrento conflito, enfatizando o que é a pedra de toque do seu cinema: por mais assustadora e espetacular que seja na sua representação gráfica, a violência na tela sempre estará aquém da sofrida por carne e osso na realidade.
Em seu mais recente filme, A Forma da Água, que estreia no Brasil neste 1º de fevereiro, Del Toro alcança uma consagração sem precedentes na sua sua trajetória. Ganhou o Leão de Ouro no Festival de Veneza, o Globo de Ouro de direção e o troféu de melhor filme do Sindicato dos Produtores dos EUA. Chega com força ao Oscar 2018. É o concorrente com maior número de indicações, 13, incluindo a melhor filme.
Como nos dois ótimos longas citados, o diretor recorre, em A Forma da Água, a elementos dos contos de fadas para falar de temas contemporâneos. A história se localiza no começo dos anos 1960, auge da Guerra Fria e da corrida entre americanos e soviéticos para desbravar o espaço. A atriz inglesa Sally Hawkins vive Elisa, faxineira latina de um centro de pesquisa do governo dos EUA que se afeiçoa por um humanoide anfíbio encontrado na Amazônia e ali aprisionado.
Como em A Bela e a Fera, Elisa irá explorar o território onde vive a criatura. Em vez do medo e da repulsa, o contato lhe desperta empatia e até mesmo uma tensão sexual. Elisa é muda, sua comunicação com aquele misterioso será, portanto, com uma linguagem que ambos tornarão fluida. A curiosa faxineira firmará com aquele que os outros veem como monstro uma conexão física e emocional. Com a criatura condenada à dissecação para estudos científicos, Elisa mobiliza a colega negra Zelda (Octavia Spencer) e o vizinho gay Giles (Richard Jenkis) para uma operação de resgate.
São três personagens bem delineados para representar tipos à margem do chamado sonho americano naqueles anos 1960 em que eclodiram a lutas pelos direitos civis — luta que segue ainda hoje. São vítimas de preconceito, racismo, sexismo e abuso de autoridade. São, Elisa, Zelda e GIles, sob esse prisma, também monstros repulsivos. Olham para baixo diante de interlocutores como o vilão da trama, encarnado por Michael Shannon, o chefe de segurança retratado com as tintas fortes, excessivas até, da caricatura. Representa esse vilão o americano branco "vencedor", puritano, leitor da Bíblia, defensor da pátria e da família que tem como meta na vida chegar na espaçosa casa de subúrbio pilotando seu Cadillac novo em folha. Mas trata-se de um tipo belicoso, abusivo e sádico que, à dramaturgia forçada pelo roteiro, tem a função de contrastar com a candura de Elisa e seus amigos — e, lógico representar o típico eleitor conservador de Donald Trump, presidente que quer erguer um muro para que mexicanos como Del Toro saibam onde é seu lugar no mundo.
Combinando esses elementos, tem-se em A Forma da Água um efetivo diálogo entre as demandas políticas e sociais nos EUA em um passado recente e a reação de nova era Trump a essas demandas — em sintonia com outro indicado ao Oscar, The Post — A Guerra Secreta, de Steven Spielberg.
Mas a possível leitura política dessa peculiar história de amor mascara suas fragilidades. Da interessante premissa da empatia que aproxima seres deslocados na sociedade que se padroniza por convencional, A Forma da Água desidrata-se nas referências a velhos musicais de Hollywood, a filmes de espionagem em que russos e americanos brincam de gato e rato e ao carimbo da mensagem edificante.
Como sua criatura aquática, Del Toro perde fôlego quando se lança para fora do ambiente que tão bem domina rumo a aventura convencional de ritmo mais acelerado. Mesmo no mundo da fantasia, e sob o conceito da invisibilidade social de pessoas como a protagonista, é pouco crível o franco acesso de Elisa a uma sala supostamente secreta e sob segurança máxima. A Forma da Água segura o pique graças ao seu bom elenco, com a talentosa Sally Hawkins vencendo a dificuldade de expressar, a humanos e ao inumano, sentimentos extremos entre o melancólico desamparo e a pulsão sexual.
Não se observa em A Forma da Água a tensão permanente, o desconforto residual e o simbolismo da conexão entre fábula e realidade alcançada por O Fabirinto do Fauno na sua incursão pelo pesadelo franquista. Essas concessões para apresentar uma trama mais palatável e universal podem valer a Del Toro a consagração no Oscar já alcançada por seus amigos Alfonso Cuarón e Alejandro González Iñarritu. E podem também compensar a dor de cabeça causada pelas recentes acusações de plágio: de um curta holandês de 2015 e de uma peça teatral americana de 1969, ambos com a mesma premissa da mulher no laboratório encantada com uma criatura aquática. Del Toro e seus produtores refutaram as acusações, alegando ser seu projeto anterior ao primeiro e desconhecer a existência da segunda.