A fotografia é a arte de reter o tempo, e o cinema, de expandi-lo. A franco-belga Agnès Varda sempre soube lidar com essa dicotomia, construindo uma obra sólida em ambas as formas de expressão. Desde que iniciou sua produção, nos anos 1950, antes da explosão da Nouvelle Vague, não foram poucas as ocasiões em que ela conectou esses dois polos, seja na exploração de grafismos móveis mas típicos da imagem fotográfica, seja na sugestão do movimento em trabalhos que, em si, não eram cinema.
Um dos filmes que mais claramente apresentam essa conexão é Visages, Villages, uma pequena obra-prima premiada com o troféu Golden Eye de melhor documentário no Festival de Cannes, indicada ao Oscar na mesma categoria e estreia desta quinta-feira (25/1) nos cinemas brasileiros (em Porto Alegre, entra em cartaz no Guion Center).
Varda, que acaba de ganhar um Oscar honorário, completará 90 anos em 30 de maio. Neste seu 23º longa-metragem, o primeiro desde As Praias de Agnès (2008), ela dança em uma boate, sobe escadas e até em um contêiner, viaja pela França, chora em frente à câmera, deixa-se filmar na intimidade de um tratamento médico contra a perda da visão e, ainda, canta o hit da disco music Ring My Bell (1979), de Anita Ward.
É uma aventura, na qual a grande dama do cinema francês contemporâneo se joga acompanhada do artista visual JR. Ele tem 34 anos e, como diz Varda em meio à narrativa, é um jovem "cheio de alegria". Construiu um furgão em forma de câmera fotógrafica para percorrer pequenas localidades do país (villages), capturar registros dos rostos (visages) de seus moradores, imprimi-los em grandes formatos e, depois, fixá-los em muros, paredes, casas.
O filme documenta a viagem que Varda fez com ele. Não sem antes fazê-lo conhecer seus métodos, que ela explica em uma das primeiras sequências, no início do percurso:
– O acaso é o meu melhor assistente.
Ela estava dizendo, como fica claro logo em seguida, que a escolha dos lugares visitados, dos personagens participantes e, consequentemente, das imagens produzidas não obedeceria a uma lógica previamente estabelecida. É assim que eles vão acabar fotografando peixes e cabras, visitando o túmulo de Henry Cartier-Bresson, revendo as falésias da costa da Normandia onde, décadas atrás, Guy Bourdin posou para as lentes de Varda. E, por fim, visitando a casa de Jean-Luc Godard, em um desfecho sobre o qual, por ora, pode-se dizer apenas que é melancólico e surpreendente. Nada mais.
Os encontros com os personagens "anônimos" são invariavelmente marcantes. Ver a própria imagem em locais públicos de grande visibilidade mexe emocionalmente com aqueles modelos fotográficos casuais, e a presença de uma dupla tão cativante e entrosada de artistas como Varda e JR só faz com que eles se abram ainda mais – aproximando o efeito de Visages, Villages das "descobertas do outro" nos filmes de Jean Rouch e, no âmbito brasileiro, Eduardo Coutinho.
No caso de Varda e JR, o poder mágico de desnudar a alma dos entrevistados não advém apenas de seu método de aproximação, mas do projeto artístico que apresentam a eles. São dois momentos: a captura da fotografia (que retém o tempo) e a filmagem de seu resultado (que o expande). A imagem gigante é o espelho de algo que ficou, mas que, agora, pode ser compartilhado – processo que é em si mesmo a construção da memória coletiva.
Visages, Villages é, assim, um filme sobre o tempo. O olhar de Varda, que o montou junto a Maxime Pozzi-Garcia, tem isso presente em todos os momentos: cada corte parece ser um comentário sobre o que os autores viram, nas filmagens ou em um passado remoto, caso das relações da diretora com os citados Bourdin e Godard. Sua apurada ironia, já conhecida dos cinéfilos, está muito presente. E há, ainda, uma doçura que Varda parece ter aprimorado com o passar dos anos, vide o igualmente confessional As Praias de Agnès – o espelho do tempo, no caso da cineasta, foi transformando-a, além da grande artista que ela sempre foi, em uma simpática velhinha pela qual é impossível não se afeiçoar.
A presença de JR é fundamental não só porque ele é o autor do projeto fotográfico que deu origem ao filme, mas também porque a provoca, a inquieta – desperta nela memórias como as que a levaram a Godard. Com o jovem parceiro, Agnès Varda ficou ainda melhor. Fez um dos mais belos filmes de toda a sua carreira.
VISAGES, VILLAGES
De Agnès Varda e JR
Documentário, França, 2017, 90 minutos.
Estreia nesta quinta-feira (25/1) no Guion Center, em Porto Alegre.
Cotação:excelente.
5 filmes de Agnès Varda
Cléo das 5 às 7 (1962)
No calor da Nouvelle Vague, a cineasta apresenta em tempo real a jornada de uma cantora (Corinne Marchand) que, enquanto espera o resultado de uma biópsia, circula por Paris e faz um balanço de sua vida.
As Duas faces da Felicidade (1965)
Jovem carpinteiro (Jean-Claude Drouot) casado e pai de dois filhos encara a possível reviravolta em sua vida ao conhecer uma funcionária dos correios (Marie-France Boyer).
Sem Teto Sem Lei (1985)
Sandrine Bonnaire personifica a tragédia da andarilha que tem a história contada por quem a conheceu antes de seu corpo congelado ser encontrado. Também conhecido no Brasil como Os Renegados.
Os Catadores e Eu (2000)
Obra-prima do documentário em que Agnès percorre a França registrando pessoas que vivem de coletar comida e objetos descartados por outros. A diretora é ela própria uma catadora de histórias que costuram crítica social e referências eruditas para falar do desperdício e do desapego material.
As Praias de Agnès (2008)
Criativo e emocionante inventário de Agnès sobre sua vida e obra. Trata-se de um autorretrato documental com reflexões sobre o tempo e a memória que abarcam, com imagens de arquivo, colagens e recriação ficcional, da infância na Bélgica à vida artística em Paris.