Eduardo Coutinho (1933 - 2014) é geralmente apresentado como documentarista, mas pertence àquele seleto grupo de artistas cujas classificações, seja quais forem, inevitavelmente soam limitadas. Talvez não houvesse, hoje, cineasta mais importante em atividade no Brasil.
Sua mais aclamada revolução se deu com Cabra Marcado para Morrer (1985), projeto violentamente interrompido pelos agentes da ditadura militar e retomado, após a abertura política, com doses de autocrítica e despojamento suficientes para transformá-lo numa síntese do país e da própria posição do artista diante daquele estado de coisas.
Mas foi a partir do fim dos anos 1990, depois de um longo hiato trabalhando para a televisão, que Coutinho efetivamente mudou o cinema nacional. Usando câmeras portáteis digitais, uma novidade à época, pôde se aproximar de seus entrevistados sem se preocupar com restrições de espaço e tempo, transformando conversas com personagens anônimos em acontecimentos de raro impacto para o espectador.
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Havia coisas que as pessoas diziam a Coutinho, apenas e tão somente a ele, era a impressão que se tinha. A partir de uma novidade tecnológica, o diretor transformou as bases das relações éticas entre entrevistador e entrevistado - algo cujo impacto não se deu apenas no documentário, ou no cinema, mas também na televisão que hoje se faz tão fortemente a partir de flagrantes da vida real.
Em longas-metragens como Babilônia 2000 (2000) e Peões (2004), a interferência da pós-produção é mínima. Santo Forte (1998), o primeiro filme desta leva, foi recebido com um misto de admiração e incompreensão. Menos de cinco anos depois, com Edifício Master (2002), sua popularidade era quase inimaginável para alguém que trabalhava exclusivamente com documentários.
São desta safra alguns dos personagens mais emblemáticos do cinema brasileiro - o fã carioca de Frank Sinatra, o síndico que usa métodos de Piaget e Pinochet, a umbandista que descreve suas "surras de santo"...
Quando parecia impossível levar sua pesquisa de linguagem adiante, Coutinho lançou sua obra-prima. Jogo de Cena (2008) saía do terreno imóvel da não-ficção para mergulhar no piso movediço que separa a realidade daquilo que é encenado - por mulheres anônimas e atrizes como Marília Pêra e Andrea Beltrão. Nem sempre a arte de caráter provocativo é fruída com prazer pelo público. Ver as provocações de Coutinho, ao contrário, era ter a sensação de que não havia nada mais estimulante.
Um Dia na Vida (2010), seu penúltimo filme, foi apresentado apenas em sessões isoladas. Consistia na montagem intercalada de trechos de programas da televisão aberta flagrados pelo realizador ao longo de 24 horas, e que não podiam ser reproduzidos sem autorização de quem aparecia em suas imagens - daí as restrições à sua veiculação. Do ponto de vista crítico, era um novo passo à frente na exploração da linguagem audiovisual - trata-se de um ensaio sobre apropriação e ressignificação do real -, que fazia teóricos e pesquisadores se perguntarem para onde mais seria possível o cineasta evoluir. Para o público que conseguiu assistir ao filme, ficava "apenas" a impressão de que nunca houve uma crítica tão consistente à precariedade da programação da TV no país.
Entrevistei Coutinho três vezes. Em pelo menos duas dessas ocasiões, ele mencionou a insegurança que sentiu ao lançar aquele "objeto estranho" chamado Santo Forte. Disse que cada novo projeto representava uma incógnita semelhante, e que esse sentimento de incerteza funcionava como combustível criativo - além de evidenciar sua necessidade de avançar, dizendo o que ainda não havia sido dito. Paradoxalmente, demonstrava sabedoria, tanto no que diz respeito à linguagem audiovisual quanto nas lições sobre ouvir o outro - e respeitá-lo naquilo que ele tem a dizer.
Seu vício era o cigarro, que fumou sem parar ao longo de muitos anos. E que, no entanto, não o impediu de chegar aos 80 anos em sua fase mais prolífica e criativa.