Nesta quarta-feira (31), completam-se cem anos do nascimento de Jean Rouch (1917 – 2004), nome-chave para entender não apenas o cinema, mas toda a produção artística do século 20, se a problematizarmos a partir da relação entre o artista e o público – o intelectual e o povo, o eu e o outro.
Rouch nasceu em Paris, formou-se engenheiro e foi se encontrar no Níger, onde trabalhou na construção de estradas e pontes. Filho de um meteorologista que desbravou a Antártida, tinha a veia exploradora latente, o que se podia notar desde o interesse pelas viagens do surrealismo, se o leitor me permitir essa analogia com jeito de trocadilho.
Viveu a II Guerra Mundial desde a África, voltando à Europa em 1945 como parte do exército de libertação do país formado pelos franceses que viviam no exílio. Conhecer esse caminho é fundamental para entender sua obra: enquanto o cinema europeu do pós-guerra tentava se aproximar do real com retratos mais fiéis de um continente em ruínas (o que originaria a revolução do Neorrealismo e as teorias realistas de Siegfried Kracauer e André Bazin, este uma espécie de mentor da Nouvelle Vague), Rouch e companheiros como Marcel Griaulle criavam as bases daquilo que se convencionou chamar de filme etnográfico.
A ponte entre esse subgênero documental e o cinema de caráter realista do pós-guerra é a própria ponte entre a África e a Europa – ponte esta que Rouch construiu na prática ao ir a campo filmar a cultura de povos como o Songai, habitante da região que compreende, entre outros países, Nigéria e Senegal.
Ele dirigiu seus primeiros documentários de curta-metragem ainda nos anos 1940, e sua primeira obra-prima, a ficção Eu, um Negro, em 1958. Hoje é lembrado, sobretudo, como o pai do Cinema Direto – aquele que, em busca de alcançar uma reprodução mais fiel do real, aproveitou-se da invenção dos aparelhos gravadores de áudio para captar som e imagem simultaneamente. Essa vertente seria lançada já na virada da década de 1960, com o marco Crônica de um Verão (1961).
Codirigido pelo sociólogo Edgar Morin, esse filme traz entrevistas com estudantes, operários e transeuntes sobre as motivações de suas vidas, registrando suas opiniões acerca de temas como política e racismo. Revolucionou o cinema documental não apenas pelas questões técnicas, mas porque, a partir destas, construiu outra ponte – a do autor com seu objeto de estudo. Em síntese, aproximou-se do outro.
E, conforme a célebre sentença sartriana – influência direta para a geração de Rouch, aí incluídos do Antonioni da Trilogia da Incomunicabilidade (1960–1962) ao Malle de Trinta Anos Esta Noite (1963) –, é pelo olhar do outro que nos reconhecemos como nós mesmos.
Robert Flaherty (1884 – 1951) e sobretudo Dziga Vertov (1896 – 1954), que teorizou quase três décadas antes o que seria o Cinema Direto, são as referências usadas por Rouch para formatar o documentário moderno. Entretanto, o engenheiro que mudou o cinema não olhou apenas para os seus semelhantes – o que foi talvez o seu grande trunfo.
A Pirâmide Humana (1961), Jaguar (1968) e Cocorico! Monsieur Poulet (1974) são outros filmes híbridos notáveis de sua filmografia, que também tem como pontos altos títulos que dão um passo adiante na problematização da representatividade ao abordar rituais religiosos africanos, notadamente o média-metragem Os Mestres Loucos (1955), que foi premiado em festivais mas causou celeuma no meio científico.
É mais do que pertinente falar em Rouch neste momento, e não só porque a produção dita autoral tem olhado para o "outro" (o cinema social em vários momentos foi tido como vocação natural das cinematografias chamadas periféricas), mas também porque as ficções cada vez mais se apropriam das técnicas do Cinema Direto. Para, aí sim, alcançar a sensação de proximidade do real.
São os casos de grande parte da produção brasileira (do nordestino Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo ao mineiro O Céu sobre os Ombros) e de um certo cinema europeu consagrado nos maiores festivais (do português Juventude em Marcha ao italiano César Deve Morrer), sem contar as ondas de mockumentários de terror aos moldes de [Rec] (2007) e Cloverfield – Monstro (2008) e de títulos com visual hipernaturalista cuja conformação é consequência da evolução da linguagem documental e das possibilidades oferecidas pelas novas tecnologias, notadamente as câmeras digitais portáteis, de 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias (2007) a Boyhood (2014).
Há Jean Rouch em todos esses filmes. O diretor de Crônica de um Verão é referência incontornável em qualquer aproximação entre o real e sua representação, seja em que registro for.
Como assistir
Ausentes da grade das emissoras de TV e dos serviços de streaming, os filmes de Jean Rouch podem ser vistos a partir de DVDs. São os casos de A Pirâmide Humana (1961) e Cocorico! Monsieur Poulet (1974), que estão reunidos em um disco lançado pela Bretz Filmes.
Os Mestres Loucos (1955), Eu, um Negro (1958) e Jaguar (1968) estão disponíveis em outro DVD, lançado pela Videofilmes.
Outros filmes de Rouch já foram lançados em home vídeo no Brasil, mas estão fora de catálogo. Um exemplo é o DVD de Crônica de um Verão (codirigido com Edgar Morin, 1961), também da Videofilmes, que traz diversos extras, inclusive comentários do cineasta Eduardo Coutinho, e hoje só pode ser encontrado em lojas de usados.
Na França, na Inglaterra e nos EUA há vários títulos disponíveis. Um destaque das edições internacionais é a caixa Coleção Jean Rouch, com seis longas, lançada em Portugal, ou seja, com legendas em português.