"O dia em que o cinema morreu." Foi com essa sentença que artigos e reportagens diversas referiram-se àquele 30 de julho de 2007. Na manhã da data fatídica, veio a notícia da morte do sueco Ingmar Bergman, aos 89 anos. Ao fim da noite, faleceu o italiano Michelangelo Antonioni, então com 94. Muitos só souberam deste último após a 0h – mais um capricho do tempo –, mas a coincidência estava posta. E as analogias com o fim, também.
Talvez ainda estivéssemos todos sob o signo apocalíptico da década de 1990, na onda do fin de siècle e do naufrágio das utopias – constatado antes por alguns pensadores, mas que se tornou uma questão universal, de fato, no período pós-queda do Muro de Berlim. O mundo fragmentado que surgia pulverizou o público do outrora chamado cinema de autor. Sobreviveram apenas uma massa que, ao menos na conta fria dos números das bilheterias que sustentam a indústria dos superblockbusters, é amorfa, e, além dela, alguns pequenos nichos interessados no que, vamos definir assim, seria o legado dos grandes mestres do século 20 – sendo Bergman e Antonioni dois dos maiores deles.
É verdade que esses nichos parecem cada vez menores – e a ocupação de Hollywood, mais avassaladora. Mas, 10 anos depois, talvez seja o caso de relativizar. Afinal, os nichos existem. Fazendo uma analogia com a historieta milenar do menino que, vendo milhares de peixes morrerem fora d’água, correu para jogar de volta ao mar meia dúzia deles, ou quantos conseguisse, sabendo que seriam poucas as vidas salvas, mas, ainda assim, vidas salvas: se há pessoas interessadas em filmes que fazem pensar para além do entretenimento espetaculoso, mesmo que não sejam as multidões que no passado lotavam os grandes cinemas de calçada para ver os filmes europeus, pode-se dizer que o cinema não morreu.
Ainda que, porventura, o público suma, a arte sobreviverá enquanto houver artistas apontando novos caminhos para a linguagem. E há. Muitos. Misturando ficção com documentário, testando novos suportes, fazendo filmes-denúncia, filmes-ensaio, imersivos, sensoriais, memorialísticos. Algo sobre o que se pode refletir, aproveitando a efeméride, é o que esses novos caminhos têm a ver com Bergman e Antonioni.
A dupla começou a carreira nos anos 1940, década da revolução neorrealista, que se ergueu sobre os escombros de uma Europa devastada pela II Guerra Mundial. Não é equivocado associar a alvorada de uma certa produção de autor (a expressão ganhou força àquele momento, em contraposição à produção industrial) à necessidade de dizer algo sobre a barbárie. De expressar-se criativamente sobre aquele estado de coisas. Antonioni nasceu para o cinema junto ao neorrealismo, que é originalmente italiano, estreando com o documentário Gente do Pó (1947), sobre a vida em comunidades ribeirinhas do Vale do Rio Pó – mesma região onde Luchino Visconti rodou o seminal Obsessão (1943), marco inicial do movimento.
Ao aprofundar a pesquisa sobre as relações entre as pessoas e o espaço que habitam, Antonioni se afastou desse modelo e moldou seu estilo narrando primeiro o vazio dessas relações (notadamente na Trilogia da Incomunicabilidade, lançada entre 1960 e 1962) e, depois, a sua artificialização (em Blow-Up, de 1966). Esse deslocamento é simbólico da própria modernização do cinema, arte que, absorvidas as lições neorrealistas, deu outros passos buscando retratar a vida na complexa sociedade agora assombrada pela Guerra Fria e dinamizada pelo capitalismo pós-industrial. Que relações se estabelecem nessa conjuntura? – é a questão a que Antonioni parece ter se dedicado a responder.
Bergman criou uma obra monumental, composta de dezenas de filmes, muitos deles obras-primas, buscando respostas para perguntas semelhantes a essa. Na verdade, um olhar em retrospectiva indica que se tratava de pura retórica – ele não investigava a existência de Deus, como pesquisadores usualmente apontam, e sim apenas e simplesmente confirmava sua inexistência; do mesmo modo, não se interrogava sobre o significado da morte, mas lamentava a impossibilidade de realização plena da vida.
No início, Bergman também nadava conforme a corrente realista dominante. Títulos como Monica e o Desejo (1953) foram referenciais para a nouvelle vague francesa, afirmada no finzinho dos anos 1950, quase tanto quanto o próprio neorrealismo desenvolvido por Roberto Rossellini e Vittorio De Sica. Depois, contudo, o sueco isolou-se duplamente: vivendo na distante ilha de Faro, construiu uma filmografia que não encontra paralelo na história do cinema, seja pelo desenvolvimento de um estilo intimista (foi chamado de o cineasta da alma), seja por expor, com absoluta autenticidade, as angústias da existência – perfeitamente sintetizadas na jornada do cavaleiro que procura um sentido para a vida na fé mas só encontra a miséria humana em um mundo devastado pela intolerância religiosa (em O Sétimo Selo) e no ocaso de um professor cuja memória parece inexoravelmente associada a desilusões e, consequentemente, ressentimento (em Morangos Silvestres), ambos os longas lançados em 1957.
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Buscando compreender as inquietudes dos homens e das mulheres de seu tempo, Bergman e Antonioni responderam com grande arte à realidade do mundo traumatizado pela II Guerra. Suas visões independentes, porém convergentes, foram fundamentais não apenas para a conformação de movimentos como a citada nouvelle vague, mas para a própria formação das gerações seguintes – não há possibilidade, hoje, de se fazer cinema desconhecendo seus legados. Mais do que isso, elevaram a linguagem a um patamar raras vezes alcançado, empurrando as pesquisas dessas gerações a uma altura que, sem eles, não seria possível atingir.
Bergman desmontou o clichê segundo o qual o cinema é uma arte menor porque impõe intermediários entre o criador e sua criação – foi um cineasta tão despojadamente aberto a compartilhar seus tormentos que, como indica sua alcunha, parecia expor a essência da própria alma. Antonioni, por sua vez, pode ser um exemplo a confirmar o que, no extremo oposto desse raciocínio, põe o cinema como a maior entre as artes, afinal, é aquela que reúne elementos de todas as demais linguagens – até há música e teatro nos filmes mais ordinários, mas a arquitetura, por exemplo, só se deixa evidenciar em uma obra-prima como O Eclipse (1962), que relaciona de maneira orgânica o vazio dos ambientes ao abismo às vezes intransponível entre as pessoas que o habitam.
A sétima e última das artes pode não evoluir cronologicamente tal qual as outras, como indicam os teóricos que defendem que as pesquisas dos artistas são desenvolvidas de maneira paralela, o que faz com que um filme de narrativa clássica possa ser pertinente mesmo realizado décadas depois das propostas mais vanguardistas. Mas é factível pensar que, da mesma forma que certo tipo de pintura só foi possível após Giotto, e outro, após Picasso, certo tipo de filme só existe porque antes existiram Persona (1966) e Gritos e Sussurros (1972), de Bergman: hoje não se chega a um cinema da alma (filosófico-existencial e, acima de tudo, pessoal) sem passar pelos mestres da geração que fundamentou a ideia de autoria na produção moderna.
Não se trata de dizer que alguns realizadores contemporâneos, como Sofia Coppola e Wong Kar Wai, entre outros, pagam tributo a Bergman e Antonioni. A questão é mais profunda. Pensemos no conceito de sistema, que compreende toda a cadeia produtiva, incluindo financiamento, realização e reflexão: é o que o cinema como um todo diz à sociedade, sobre esta, que deve muito a Bergman e Antonioni. O repertório de um cineasta não está completo se desconhecer as obras dos dois, assim como o de um crítico, o de um mecenas e mesmo o de um burocrata dessa cadeia. Hoje podemos nos pensar melhor como sociedade a partir das reflexões postas nos filmes da dupla, ou, sendo mais radical, a partir das imagens desses filmes, inclusive isoladamente. São de enorme complexidade, por exemplo, planos como aquele ao fim de A Paixão de Anna (1969), de Bergman, que mostra o personagem se desintegrando conforme o zoom se fecha sobre ele e a granulação aumenta até embaçar por completo a visão do espectador.
Nesse trecho, o narrador responde ao pressuposto de embaralhamento de identidades suscitado pela dramaturgia do longa – tema de Persona, lançado três anos antes, e também de um dos maiores filmes do século 20, Um Corpo que Cai (1958), de Hitchcock, além da derradeira obra-prima de Buñuel, Esse Obscuro Objeto do Desejo (1972). A Paixão de Anna é um filme menor de Bergman, mas ajuda a entender como o diretor voltou a certos assuntos, vislumbrando-os a partir de novos olhares ou novas construções formais e cruzando-os com outras inquietações – sobre o amor, a família, as aparências e a culpa, além da fé e da morte.
O olhar desesperançoso sobre esses temas era um traço comum a Bergman e Antonioni – e, igualmente, a alguns outros mestres da geração deles, uma das mais notáveis da história do cinema. Sob certo aspecto, a incredulidade das utopias verificada mais recentemente apresenta uma continuidade desse olhar. Talvez mais adequado, no entanto, seja pensar a obsessão pelo fim como contingência de um contexto que inclui fatores extracinematográficos e, muito especialmente, socioeconômicos. Bergman e Antonioni anteviram a grande crise do homem contemporâneo, isso sim. Crise que foi, ela própria, a origem da sina apocalíptica da virada do milênio.
O cinema não morreu com Bergman e Antonioni. O cinema vive a partir de Bergman e Antonioni.