Com sua longa barba branca, seus chapéus e roupas largas a lembrar a imagem de um profeta do Antigo Testamento, Fernando Birri parecia a própria encarnação das míticas figuras das sagradas Escrituras, capazes de antever tendências e indicar caminhos – profetizar.
O cineasta, morto em 28 de dezembro, aos 92 anos, foi ao mesmo tempo o pai do cinema novo argentino e um mestre que formou e inspirou gerações em toda a América Latina. De algum modo, uma referência a todos os que pensam o cinema como forma de expressão artística e capacidade de transformação por meio da representação. Era essa a sua convicção, notável desde os primeiros filmes – marcos iniciais do cinema moderno no continente.
Filho de imigrantes italianos em Santa Fé, no centro-leste da Argentina, Birri estudou Direito e se envolveu com o teatro e as artes visuais antes de fundar o primeiro cineclube de sua cidade natal. Quando o país então governado por Juan Domingo Perón se tornou "irrespirável", como ele definiu em entrevista concedida à revista Sin Permiso em 2006 (que foi republicada no último dia 29, por ocasião de sua morte), resolveu fazer o caminho inverso de seus pais, exilando-se na Itália para estudar cinema.
Birri viu a efervescência neorrealista de dentro. "Não fui à Itália; fui ao Neorrealismo", ele disse, repetidas vezes. Estudou no Centro Sperimentale di Cinematografia, de Roma, por onde também passou Michelangelo Antonioni, mas, a exemplo de seus ídolos à época (Vitorio De Sica, Lucchino Visconti, Roberto Rossellini), aprendeu muito fora dos bancos escolares – nas ruas de uma Europa ainda sob o efeito do horror extremo vivenciado na II Guerra Mundial.
O histórico curta Tire Dié (1960) não foi o seu primeiro, mas era a melhor síntese do que ele queria dizer ao voltar à Argentina. Trata-se de um documentário que acompanha crianças pedintes de esmolas para os passageiros dos trens que chegavam a Santa Fé. O título faz referência à súplica por moedas de 10 centavos – quando o trem provinha da capital Buenos Aires, os piás aumentavam a pedida, gritando "tire 50".
É chocante, mas não só isso. Birri despertava comoção e indignação ao mesmo tempo em que apresentava um modo de filmar já difundido nos centros europeus, porém, ainda pouco familiar aos latino-americanos. Acontecia algo parecido em Cuba, com Tomás Gutiérrez Alea, que estudou na mesma escola romana e voltava para se tornar o principal cineasta de seu país pós-Revolução de 1959. É importante observar que, em nenhum dos casos (assim como no Cinema Novo brasileiro, com Nelson Pereira dos Santos e depois com Glauber Rocha e outros), pode-se falar de um tipo genérico de cinema, desprovido de autenticidade.
O que os profetas do novo mundo fizeram foi absorver lições de quem trabalhava em tentativas de representação do horror extremo e aplicá-las às particularidades de suas regiões. Há, em Birri, em Alea, em Nelson e em Glauber, uma busca latente, muito acentuada, quase obsessiva por retratar essas particularidades. Em raros momentos os filmes latino-americanos foram simultaneamente tão globais (sintonizados com as revoluções da linguagem) e nacionais (usando essas revoluções para pensar os países em que são realizados).
Para Birri a consagração internacional veio em 1962, com o longa-metragem Los Inundados, inicialmente exibido fora de competição no Festival de Veneza, mas premiado melhor filme de diretor estreante. Inspirado na vida de famílias santafesinas que viviam às margens do Rio Salado, sofrendo com inundações, o argentino realizou um impactante exercício estilístico, entre a tragédia e a comédia, a ficção e o documentário, falando sobre as relações de poder e a corrupção – tudo ao mesmo tempo, como se estivesse resumindo um país em um filme.
O registro mudou em Org (1979), adaptação da obra de Thomas Mann, e no drama fantástico Un Señor Muy Viejo con Alas Enormes (1988), realizados quando Birri já atuava predominantemente com ensino, entre Argentina e Cuba, onde fundou a afamada Escola de Cinema e Televisão de San Antonio de los Baños, em 1986. Quando "indicar tendências" se tornou uma expressão banalizada, já no ambiente da contemporaneidade, a imagem antiquada do profeta argentino passou a conter alguma ironia – o que foi capturado pelo seu conterrâneo Eliseo Subiela, diretor do imperdível Paisagens Devoradas (2012), sobre um misterioso homem (interpretado por Birri) que vive em um manicômio dizendo ser um histórico cineasta dos anos 1960.
Houve outras homenagens, como a de Humberto Ríos, diretor de Fernando Birri, el Utópico Andante (2013). Deve haver mais. Não fosse pelos caminhos abertos pelo diretor de Tire Dié e Los Inundados, o cinema latino-americano talvez não seria o que é hoje.