Por Fatimarlei Lunardelli
Jornalista, crítica, professora e doutora em cinema pela USP
Nelson Pereira dos Santos é imenso. Bastaria ser lembrado pela interpretação que fez da experiência de Graciliano Ramos na ditadura Vargas em Memórias do Cárcere, em 1984. Muito além dessa obra extraordinária do cinema brasileiro, o cineasta produziu uma variada e consistente filmografia de quase 30 títulos, entre ficção e documentário, que o coloca entre os intelectuais que pensaram o Brasil. No caso, por imagens de um cinema moderno, novo e vigoroso do qual foi precursor.
Prestes a completar 90 anos, Nelson é a presença viva de uma geração que inaugurou um novo modo de viver, aquele dos jovens no pós-guerra. Nascido na capital paulista, numa família de origem italiana e portuguesa, tinha 21 anos quando, em 1949, chegou a Paris, epicentro da efervescência cultural que fazia do cinema a própria vida. Foram apenas dois meses, suficientes para entrar em contato com os filmes na Cinemateca Francesa de Henri Langlois, com o cineclubismo apaixonado e o neorrealismo de Roberto Rosselini. Experiência marcante para o então estudante de Direito que, pela cinefilia do pai, já havia se decidido pelo cinema. Mas o que levou Nelson a pensar o Brasil pelas imagens em movimento foi, junto com o desejo do cinema, a consciência política nos anos de formação na juventude comunista e a leitura do romance brasileiro da década de 1930 – Jorge Amado, José Lins do Rego e Graciliano Ramos.
O 50º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, que se encerra neste domingo, homenageou o diretor com a Medalha Paulo Emílio Salles Gomes, destinada aos que contribuem com o pensamento no cinema brasileiro. Não falta reconhecimento a Nelson: desde 2006, faz parte da Academia Brasileira de Letras (ABL) na condição de seu primeiro e único cineasta e já foi agraciado com títulos de universidades e instituições de cinema no Brasil, EUA e Europa. Mas o que faz a imortalidade do artista é sua obra, que ganha agora lançamento nobre em home vídeo pela Bretz Filmes, a partir de cópias restauradas. Intitulada Dos Anos 1950 à Década de 2010, a coleção traz quatro ciclos cronológicos em caixas especiais de DVD. Começa com o período de 1956 a 1967 e, até o aniversário de 90 anos, em outubro de 2018, o plano é soltar edições cobrindo os períodos de 1968 a 1973, de 1977 a 1993 e de 2000 a 2012, todos com generosos extras.
Marco do Cinema Novo, Vidas Secas (1963) é o principal título da primeira fase. Quando Nelson chegou a Alagoas, em 1962, para filmar a saga dos retirantes escrita por Graciliano, já era um diretor consagrado em pleno domínio do seu ofício. A primeira tentativa de filmar Vidas Secas tinha sido em 1958, quando Nelson produzia documentários institucionais sobre os flagelados da seca em Juazeiro, na Bahia. A visão das pessoas miseráveis e sofridas se impôs ao diretor que já usava o cinema para fazer um discurso sobre os desafortunados do país. Diante do esforço de extrair um roteiro da realidade crua da qual era testemunha, a lembrança da obra de Graciliano foi uma solução para o cineasta que conhecia o país, também, pela literatura.
Montada a produção, a ironia de uma chuva que verdejou o sertão impediu que se filmasse. O inesperado levou Nelson a improvisar Mandacaru Vermelho, filme rápido, um pequeno western no qual, pela primeira e única vez, também foi ator. No gênero que fazia a cabeça dos cinéfilos dos anos 1950, interpretou um vaqueiro apaixonado por uma moça prometida em casamento, o que obriga o casal a fugir da família dela. Lançado em 1961, está na caixa inicial, junto com Boca de Ouro (1962), o primeiro grande sucesso de público. A adaptação da obra de Nelson Rodrigues sobre o bicheiro carioca, narrada de três pontos de vista diferentes, foi feita sob encomenda.
Em 1964, Vidas Secas foi indicado, junto com Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha, para representar o Brasil no Festival de Cannes. Ganhou prêmios, reconhecimento internacional e surpreendeu pelas ousadias estéticas. A fotografia sem filtros de Luiz Carlos Barreto fez a luz estourar na tela como o sol queima a paisagem agreste do sertão. E, substituindo a trilha sonora convencional, Nelson recriou os sons descritos no livro: o vento na caatinga, o barulho dos animais e do carro de bois, metáforas da angústia de uma vida sem perspectivas no Nordeste. Quando se conta a história do Cinema Novo, Glauber emerge como o intelectual, aquele que escreveu e estabeleceu o conceito politizado da estética da fome, ideia em torno da qual já se fez muito barulho. Não apenas por ser mais velho, mas por ter uma personalidade moderada, a militância em Nelson é constituída de uma permanente revisão crítica, que se expressou, também, no filme seguinte.
El Justicero (1967) fecha a primeira cronologia da coleção e é uma raridade. Era um filme perdido, uma comédia satírica sobre um playboy de Ipanema, filho de um general. Em plena ditadura, o longa foi proibido, tendo cópias e negativo destruídos. A restauração foi feita a partir de uma versão em 16mm, remanescente do festival italiano de Pesaro. Na época, os cinemanovistas já haviam substituído o mundo rural pelo exame do intelectual urbano frente aos desdobramentos do golpe de 1964. A esperada resistência popular, que não aconteceu, deixou os intelectuais de esquerda numa confusão expressa no calor da hora por Paulo César Saraceni em O Desafio (1965) e logo adiante complexificada por Glauber Rocha em Terra em Transe (1967). El Justicero é do mesmo período, e a visão que apresenta do microcosmo, do qual fazem parte os cineastas, não é nada complacente. Com humor irônico, faz uma crítica irreverente à ditadura, à classe média e também à militância de esquerda. Nelson realizou o projeto com a distribuidora Condor Filmes e a participação de seus alunos da UnB, do curso de cinema fechado pelo governo militar. A fase seguinte, dos filmes no contexto da ditadura, do chamado "exílio em Paraty", ficou para a segunda caixa.
O filme de abertura do projeto é Rio, Zona Norte, de 1957, inspirado na história do compositor Zé Keti, com Grande Otelo no papel de um músico popular enganado por um empresário espertalhão. A ausência inaceitável na coleção é a de Rio 40 Graus (1956), primeiro filme dirigido por Nelson, divisor de águas no cinema brasileiro. O lançamento comercial desse clássico se deu em Porto Alegre, em janeiro de 1956. No entrevero político da metade daquela década, foi proibido pela Segurança Pública do Rio, sob alegação de ser feito por comunistas e denegrir a imagem da cidade. Jornalistas, intelectuais e cineclubistas de todo o país conheciam Nelson dos congressos de cinema e se mobilizaram pela liberação. Quando isso aconteceu, o Clube de Cinema de Porto Alegre agilizou uma sessão de pré-estreia. Por iniciativa do jornalista e crítico Paulo Fontoura Gastal, Nelson foi convidado e veio acompanhado do ator Jece Valadão e outros da equipe. Obra precursora da estética que iria se consolidar no Cinema Novo, o filme subvertia ao mostrar sem preconceito as pessoas do povo. O jornalista Carlos Reverbel escreveu: "Se o emocionante filme de Nelson Pereira dos Santos tem algum pecado, este não é outro senão o de mostrar a vida como ela é".
Ao completar 70 anos, em 1998, Nelson recebeu no Festival de Gramado o Troféu Oscarito e lembrou com carinho a estreia comercial em Porto Alegre de seu primeiro filme. Ele tinha 28 anos e iniciava com firmeza uma das mais exitosas trajetórias do cinema brasileiro.
As homenagens
> O volume 1 da Coleção Nelson Pereira dos Santos: Dos Anos 1950 à Década de 2010, da Bretz Filmes, chegou ao mercado no último dia 15 (estava em pré-venda desde agosto). A caixa, primeira de uma série de quatro, traz clássicos como Boca de Ouro (1962) e Vidas Secas (1963), mas não inclui o marco Rio, 40 Graus (1956). As próximas estão previstas para serem lançadas até outubro de 2018, quando o cineasta completará 90 anos.
> Nelson Pereira dos Santos foi o grande homenageado da 50ª edição do tradicional Festival de Brasília, que termina neste final de semana na capital federal. A entrega da Medalha Paulo Emílio Salles Gomes e o relançamento de sua obra em home video deram início às comemorações pelos seus 90 anos.