A violência contra a mulher e a Justiça a serviço de interesses pessoais são dois temas da hora no Brasil. Mas vem da Argentina um dos filmes recentes mais instigantes sobre ambos os assuntos. Chama-se Paulina e é assinado por Santiago Mitre, 35 anos, diretor de O estudante (2011) e um dos roteiristas de Elefante branco (2012).
Paulina é a personagem-título do longa que chega nesta quinta-feira aos cinemas, depois de ter colhido prêmios em Lima, Chicago, Biarritz, Turim e San Sebastián, além de ter ganho o troféu principal da Semana da Crítica no Festival de Cannes de 2015. O título original é diferente: La patota ("A gangue", em tradução literal), referência ao filme homônimo de Daniel Tinayre (de 1961) que é protagonizado por Mirtha Legrand e no qual Mitre se baseou.
– Prefiro defini-lo como adaptação, e não remake – diz o cineasta em entrevista concedida a ZH (leia a íntegra da conversa abaixo).
Interpretada por Dolores Fonzi (O fundo do mar, Plata quemada, Esperando o messias), Paulina é uma jovem advogada, filha de um juiz (Oscar Martínez, de Ninho Vazio), que rejeita o conforto da carreira em Buenos Aires para dar aula na província de Misiones, próxima à tríplice fronteira com Paraguai e Brasil. É lá, em uma escola rural da região onde ainda resiste a língua guarani, que ela encontra a gangue – ou um grupo de jovens sem perspectivas que vão fazê-la passar pelo trauma do abuso sexual.
São meninos, todos vividos por atores não profissionais selecionados entre os moradores das redondezas. Vamos conhecendo-os por trás de suas expressões fechadas aos poucos, em sequências arranjadas de maneira engenhosa que culminam com o crime. O centro de interesse, no entanto, está na relação entre pai e filha. Mais especificamente, na maneira como a mulher idealista e o pai poderoso lidam com o acontecido.
Paulina começa e termina com longos diálogos entre os dois, que ressaltam o afeto entre eles, mas também as suas diferenças. Ela não quer se vingar respondendo às agressões com outras agressões; ele é mais impulsivo, o que trará a questão ética, profissionalmente falando, para o primeiro plano. De gênero também: a violentada foi a mulher, mas a honra mais abalada, lá pelas tantas, parece ter sido a do homem.
Ambos têm as nuances dos grandes personagens, mas a forma surpreendente com que conjuga razão e emoção torna Paulina especial – uma das mais interessantes figuras do cinema latino-americano construídas nos últimos anos.
– O filme de 1961 trabalhava o perdão com parâmetros religiosos. Minha ideia foi abordar o tema sob outra perspectiva, tentando construir uma tragédia moderna, uma espécie de Antígona, na qual as certezas da personagem, e não as suas crenças, movessem a narrativa – explica Mitre.
É importante ressaltar que essas certezas, embora claras no que indicam sobre sua dispensa do perdão e da violência como resposta ao crime, não são estanques. O caminho que Paulina percorre está aberto. Ela está aberta. O que explica a aura enigmática que carrega consigo.
"É uma personagem que põe o dedo nas feridas"
Entrevista: Santiago Mitre, diretor de Paulina
O filme original tem mais de meio século. E, aliás, é pouco conhecido no Brasil. O que você alterou da história original para que ela se convertesse em, como você já definiu, uma "fábula política" tão atual?
Eu também não conhecia o filme até que me falassem sobre trabalhar em uma adaptação contemporânea dele. Vi-o apenas uma vez e decidi não voltar a vê-lo. Foi suficiente. A personagem me esbofeteou. Tinha uma força tão grande que permanecia vigente 50 anos depois, pronta para ser reinterpretada em um contexto contemporâneo. A versão original trabalhava o perdão com parâmetros religiosos. Minha ideia foi abordar o tema sob outra perspectiva, tentando construir uma tragédia moderna, uma espécie de Antígona, na qual as certezas da personagem, e não suas crenças, movessem a narrativa. Não gosto da expressão "remake" por conta disso: mais do que refilmar, a história foi recriada. Prefiro o conceito de adaptação, mais usado quando a origem está na literatura – Paulina é "baseado em" outra obra, como se costuma dizer.
Paulina é uma personagem extraordinária, cujas motivações não são óbvias e, às vezes, não parecem claras. O que te inspirou para criá-la?
Ela reage de uma forma muito particular ao estupro. Às vezes a entendemos; em outras, não. Antes do abuso que sofre ela já havia tomado uma decisão interessante: trabalhar em uma região remota, com muitos conflitos sociais. E, depois, mesmo sofrendo o ataque, ela não tem sua convicção abalada. Paulina vai adiante, como sempre. Até os limites do racional. Minha decisão, no filme, é acompanhá-la – e não julgá-la. Uma vítima deve ser ouvida. Não se pode entender o que se passa pela cabeça ou mesmo pelo corpo de alguém que sofreu uma violência dessas. Quis fazer um filme que, em vez de impor as suas certezas, se movesse em um território difuso, de perguntas, que convide à reflexão.
A ideia de vingança, em sua acepção mais usual, não a atrai. Isso é instigante.
Pensei na inversão da ideia clássica dos filmes de vingança. Poderíamos dizer que Paulina é um "filme de não vingança". Mas não se trata de uma história de perdão. Ela não perdoa. Ela rechaça a violência, isso sim. Sabe, ou tem certeza, de que às vezes as instituições – a Justiça, a polícia, a cadeia – causam uma violência tão grande quanto aquela que ela recebeu. E ela não suporta mais violência. De todo modo, prefiro acreditar que o longa não fala de maneira tão clara – Paulina, a personagem, incomoda, interpela, te enfrenta em tuas convicções, te questiona. Faz perguntas que não têm resposta. Porque há questões que são assim mesmo. Até onde estamos dispostos a ir para transformar a sociedade? Em que momento nossos discursos progressistas se transformam em hipocrisia por conta de nossos atos? Somos capazes de respeitar as liberdades individuais quando estas não se ajustam a nossa visão das coisas? O compromisso de Paulina parece ser o de pôr o dedo nessa ferida.
O caso recente do estupro no Rio de Janeiro pôs o tema da violência contra a mulher no centro das discussões no Brasil. Outro tema da hora por aqui é a Justiça, ou o poder dos juízes, algo que também aparece em Paulina. Por que você trouxe o assunto para o primeiro plano no filme?
Provavelmente a decisão mais importante do projeto foi em torno do personagem do pai de Paulina. No original, ele tinha participação bem menor, era caracterizado sem maior profundidade. Para mim, os vínculos entre pai e filha e entre advogada e juiz era central – me permitiria desenvolver as questões em torno da Justiça, da política e das certezas que temos sobre as relações. O vínculo entre ambos é cheio admiração e afeto, mas esconde uma forma de dominação. As ações dela têm a ver com ele. Os diálogos carregados dos dois foram nossa marca fundamental, nossa demarcação de território – considerando esse território a trama original. Além disso, sempre vi Paulina como um filme de atores, no qual os intérpretes fossem tão importantes para a dramaturgia quanto o diretor e os roteiristas. Esses diálogos longos no início e ao fim demarcam isso. Para tanto, os ensaiamos muito, demarcamos os passos dos dois, posições, ritmo, deslocamento, tudo.
Dolores Fonzi e Oscar Martínez são atores conhecidos. E quanto aos outros? Os meninos de Posadas, que inclusive falam guarani: são profissionais? Como você chegou a eles?
Todos foram escolhidos a partir de um trabalho que a diretora de elenco Martina Mitre levou a cabo ao longo de vários meses nas regiões em que filmamos. Para mim, era importante que houvesse esse contraste entre Dolores e eles. Quando eles falam em guarani, uma língua quase extinta, e ela não entende nada, esse contraste se materializa. Sim: são todos atores não profissionais. Mas só porque nunca pediram dinheiro para atuar – no set, comportaram-se com profissionalismo total, assim como Dolores e Oscar.
PAULINA
(La patota)
De Santiago Mitre.
Com Dolores Fonzi, Oscar Martínez, Esteban Lamothe e Cristian Salguero.
Drama, Argentina/Brasil/França, 2015, 103min.
Estreia nesta quinta-feira no circuito de cinemas.
Cotação: ótimo.