Algo realmente importante acontecia no cinema francês em 1959. E não era o lançamento de Os Incompreendidos, de Truffaut, no Festival de Cannes daquele ano, nem as filmagens de Acossado, que Godard lançaria no ano seguinte – os dois filmes que constituem os mais notórios marcos iniciais da Nouvelle Vague.
A "outra revolução" em curso atendia pelo título de Hiroshima, Meu Amor. O longa de estreia de Alain Resnais (1922 – 2014), cineasta que já chamara a atenção com curtas como Noite e Neblina (1956), cumpriu carreira semelhante ao de Truffaut: teve première em Cannes, foi aclamado pela crítica e indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro, além de inspirar gerações com suas imagens tristemente tocantes – as de Os Incompreendidos sobre a trajetória de um menino órfão; as de Hiroshima, Meu Amor sobre a paixão nos escombros da cidade japonesa destruída na II Guerra Mundial.
Em cartaz na série Clássica, que apresenta no Espaço Itaú cópias restauradas e digitalizadas de títulos históricos do século 20 (veja horários abaixo), o filme de Resnais narra o encontro de uma atriz francesa (Emmanuelle Riva) em viagem ao Japão com um arquiteto local (Eiji Okada). Eles passam apenas dois dias juntos, mas o roteiro, o primeiro assinado pela escritora Marguerite Duras (1914 – 1996), incorpora inúmeras lembranças, sobretudo dela, em flashbacks que se tornariam um marco ao sugerir o embaralhamento entre o presente e o passado – algo que o diretor aprofundaria no igualmente clássico O Ano Passado em Marienbad (1961).
Se este último é mais cerebral, Hiroshima é puro coração. É a memória afetiva que faz as lembranças surgirem a toda hora – e elas aparecem tão fortemente, para Ela e para Ele, como Resnais batizou seus personagens, que parece difícil definir o que é vivência pessoal e o que está impregnado no imaginário coletivo.
Em dado momento, por exemplo, Ela diz: "Eu vi tudo em Hiroshima". Ao que Ele rebate: "Você não viu nada em Hiroshima". Antes, no início da trama, Resnais havia apresentado ao espectador diversas imagens impactantes das ruínas nas quais se transformou a cidade devastada pela bomba atômica. É como se dissesse: "Todos viram Hiroshima".
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A realidade os perturba sob mais de um aspecto. Ambos são casados, o que carrega o affair entre os dois de uma sensação de escapismo que é paradoxal à ideia do encontro com o real. É a reconstrução do real na mente de cada um que interessa àquele que estava, a partir dali, tornando-se um mestre do cinema.
Há mais camadas neste que é um dos filmes mais sofisticados de seu tempo. Ela está em Hiroshima rodando um longa anti-belicista – tal qual o próprio Hiroshima, Meu Amor. Em outra sequência, a dupla caminha em meio a figurantes como se estivesse no próprio filme dentro do filme – evidência das intenções de Resnais, que, aproximando a realidade da sua representação, pôde moldar um dos mais belos e complexos tratados sobre a construção da memória.
A volta a esta obra-prima, em 2017, também serve como homenagem a Emmanuelle Riva, atriz que morreu no dia 27 de janeiro, aos 89 anos – menos de cinco após nova consagração, com Amor (2012), de Michael Haneke.
Hiroshima, Meu Amor
De Alain Resnais.
Com Emmanuelle Riva e Eiji Okada.
França/Japão, 1959, 90min.
Em cartaz na sessão das 13h20min, no Espaço Itaú 1, em Porto Alegre.