Não há representação definitiva sobre o irrepresentável.
Essa frase me ocorreu lendo os obituários de Claude Lanzmann (1925-2018), o eterno realizador de Shoah (1985), que morreu no dia 5. Para além das curiosidades pessoais (foi companheiro de Simone de Beauvoir), dos outros poucos filmes que lançou (Sobibór, Un Vivant qui passe, Napalm) e das histórias que colheu (trabalhou como repórter, foi aventureiro e, quando jovem, integrou a resistência francesa na II Guerra Mundial), Lanzmann deixou como legado um dos mais elogiados e problematizados filmes da história do cinema. Mas Shoah não é a "representação definitiva" de algo, como, ao que parece, se convencionou definir nesses obituários – ainda mais de algo que, o próprio filme parece reforçar, é "irrepresentável".
A II Guerra mostrou ao mundo moderno o horror absoluto. Como transformá-lo em arte, como fruí-lo? Em meio ao Neorrealismo italiano das décadas de 1940 e 50 e à utopia na representação do real encampada pelo Cinema Verdade e pelo Cinema Direto dos anos seguintes, pesquisadores travaram um grande debate com jeito de rito condenatório implacável que transformava o uso de recursos da linguagem (encenação, movimentos de câmera, filtros fotográficos, a própria montagem) em pecado capital. O problema que estava posto não era "só" como apresentar a violência inimaginável dos campos de concentração; era o imaginário como um todo que parecia inviabilizado nas recriações do crime mais odioso.
Com quase 10 horas de duração e nenhuma imagem da época que retrata, o monumental Shoah surgiu já em 1985 (após 12 anos de trabalho) conformando um arquivo memorialístico apenas a partir dos testemunhos dos personagens e da visita aos espaços que um dia viram esse crime. Na contramão de quase tudo, de Alain Resnais (Noite e Neblina) a Steven Spielberg (A Lista de Schindler), Lanzmann encontrara uma resposta à pergunta do parágrafo anterior optando não pelo preenchimento da presença usualmente sugerida pela representação, mas pela contundência da ausência – dos corpos, do sangue, do grafismo do horror.
Até o célebre diálogo de Hiroshima, Meu Amor (Resnais, 1959) estava ali respondido. "Eu vi tudo em Hiroshima", dizia a personagem da atriz francesa, ao que o arquiteto japonês rebatia: "Não. Você não viu nada". Todos viram o horror. Ninguém viu o horror. É Shoah em sua essência: o horror vive na expressão de quem esteve lá. O que se vê a partir de uma mediação, o que se constrói depois, é outra coisa. Não o representa.
É curioso que essa espécie de não representação tenha sido apontada como a representação definitiva de algo. Não esqueçamos de que o jornalismo costuma apelar às frases de impacto em busca da profundidade possível na abordagem, já que as limitações de espaço e de tempo constituem uma sina difícil de escapar. Mas não é apenas isso. Há um fascínio ilimitado por Shoah, dos críticos de imprensa e também dos teóricos, dos cinéfilos, dos cineastas.
A razão é simples, quase óbvia, ainda que não tivesse sido fácil encontrá-la em nenhum dos realismos do pós-guerra: se pôr uma câmera era ficcionalizar (mesmo em se tratando de um documentário), e se ficcionalizar o horror absoluto era tirá-lo dessa condição (à medida que o espetacularizava, ou o trivializava), a maximização do impacto se daria pela minimização da intervenção. A fórmula de Lanzmann foi valorizar o recalque, o apagamento do trauma: só depois de nos despirmos do que acreditávemos ter visto (todos nós, os ingênuos, personificados na atriz de Hiroshima, Meu Amor), poderíamos voltar a imaginar.
Pode ter havido outras "intervenções mínimas". A grande arte não tem fórmulas. Há também algo de inocente, da parte do crítico, ou do teórico, ao tentar dispor, em argumentos objetivos, o processo de subjetivação. Resta ver Shoah. E deixar a imaginação fluir.