
O Diabo de Cada Dia, filme que estreia nesta quarta-feira (16) na Netflix, reúne uma série de atrativos. A começar por seu elenco, recheado por atores que vimos ou que serão vistos em superproduções de Hollywood – com a diferença de que, aqui, alguns estão longe dos personagens heroicos ou monstruosos aos quais os associamos. Surgem em cena, mais ou menos nesta ordem, Bill Skarsgård (o Pennywise de It – A Coisa e It – Capítulo 2), Mia Wasikowska (a protagonista de Alice no País das Maravilhas e de Alice Através do Espelho), Sebastian Stan (o Soldado Invernal do universo cinematográfico Marvel), Jason Clarke (de Planeta dos Macacos: o Confronto e O Exterminador do Futuro: Gênesis), Harry Melling (o primo Duda Dursley da franquia Harry Potter), Tom Holland (o atual Homem-Aranha) e Robert Pattinson (o futuro Batman).
Todos aproveitam cada momento, cada fala, cada close. Aliás, uma das forças do filme é a homogeneidade das atuações, que incluem Eliza Scanlen (a caçula das irmãs March em Adoráveis Mulheres), Riley Keough (de Ao Cair da Noite) e Haley Bennett (da refilmagem de Sete Homens e um Destino).
Um chamariz específico para o público nacional é o diretor Antonio Campos. Nascido em Nova York, com 37 anos comemorados no final de agosto, ele é filho do jornalista brasileiro Lucas Mendes, criador e comandante do longevo programa de TV Manhattan Connection (no ar desde 1993), com uma produtora americana, Rose Ganguzza. Campos estreou na direção com o drama Depois da Escola (2008) e traz no currículo cinco episódios da série The Sinner e o filme Christine (2016), sobre a repórter e apresentadora de TV Christine Chubbuck, que em 1974 cometeu suicídio em frente das câmeras, ao vivo.

A história que Campos conta em O Diabo de Cada Dia (The Devil All the Time, no título original) também atiça o espectador, graças à forma escolhida pelo diretor – que divide com seu irmão, Paulo, o roteiro baseado no romance O Mal Nosso de Cada Dia (2011), de Donald Ray Pollock. O próprio escritor, com uma voz serena e típica do meio-oeste americano, narra acontecimentos, revela personalidades e antevê tragédias desde o início das duas horas e 18 minutos de duração. Tudo é feito de um jeito que embaralha um tantinho cenários e épocas – começa em 1957, retrocede para o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, depois avança para 1965, à sombra da Guerra no Vietnã –, mas não de um modo confuso: de uma maneira que nos deixa grudados na tela para acompanhar as ligações entre os fatos e entre os personagens.
O filme se transcorre, basicamente, entre Knockemstiff, no Estado do Ohio, e Coal Creek, na Virginia Ocidental, nos EUA. Logo na abertura, o narrador indaga: "Como e por que tantas pessoas desses dois lugares insignificantes no mapa podem acabar conectadas? Alguns dirão que foi pura sorte, e outros jurarão que foi vontade divina. Mas eu diria que foi um pouco das duas".

Em 1957, o ex-soldado Willard Russell (Bill Skarsgård), isolado com a esposa (Haley Bennett) e o filho de uns 10 anos na zona rural de Knockemstiff, precisa combater o demônio que tomou conta dele no Pacífico, quando deparou com um sargento crucificado por japoneses. Reza todos os dias ao pé de uma cruz de madeira na floresta, mas Deus não ouve suas preces.
Em 1965, Arvin (Tom Holland), o filho de Willard, herdou do pai o senso de justiça, a ideia de que se pode consertar o que está errado, de que se deve punir quem faz mal aos outros. Esse espírito será posto à prova quando sua amada irmã adotiva, Lenora (Eliza Scanlen), passa a ser ameaçada por presenças masculinas.
Ao redor de Willard e Arvin, gravitam vários personagens. Helen (Mia Wasikowska) é a jovem que estava "prometida" a Willard, mas que acaba se casando com um pregador apocalíptico (Harry Melling). O fotógrafo Carl (Jason Clarke) e a garçonete Sandy (Riley Keough) ocultam um terrível hábito. O xerife Lee Bodecker (Sebastian Stan) também faz coisas feias às escondidas. Por sua vez, o pastor Preston Teagardin (Robert Pattinson) também comete seus pecados.
Antonio Campos vai imbricando os núcleos dramáticos enquanto aproxima religião e violência. A morte de uma personagem é, digamos, endossada por Deus, e os assassinatos em série cometidos por outro ganham contornos de ritual religioso. O fanatismo leva ao derramamento de sangue, assim como a fé, quando não recompensada, se transforma em devastação interior ou explosão de fúria. Para se alcançar alguma coisa próxima a justiça, é preciso recorrer aos punhos ou às balas. A propósito, O Diabo de Cada Dia ilustra bem o culto americano às armas: uma pistola Luger que teria sido usada por Adolf Hitler vira um presente valioso – quase uma relíquia divina.