Ticiano Osório

Ticiano Osório

Jornalista formado pela UFRGS, trabalha desde 1995 no Grupo RBS. Atualmente, é editor em Zero Hora e escreve sobre cinema e seriados em GZH e no caderno ZH2.

Rosebud

"Mank": as sete virtudes capitais de um favorito ao Oscar

No filme que estreia nesta sexta no streaming, o diretor David Fincher, de "Seven" (1995) e "A Rede Social" (2010), mergulha nos bastidores de Hollywood e do clássico "Cidadão Kane" (1941)

Ticiano Osório

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Gisele Schmidt / NETFLIX,Divulgação
Contratado para escrever o roteiro de "Cidadão Kane", Herman J. Mankiewicz é o personagem principal de "Mank" (2020)

Estreia nesta sexta-feira (4) na Netflix uma aposta segura para o Oscar 2021: Mank. O filme dirigido por David Fincher, de Seven: Os Sete Crimes Capitais (1995) e A Rede Social (2010), deve concorrer em várias categorias, pois reúne sete virtudes capitais para a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood:

1) Os bastidores nem sempre luminosos de Hollywood

Há algo de podre no reino de Hollywood, tanto a indústria quanto a localidade em Los Angeles, e isso cheira a indicações ao Oscar. Crepúsculo dos Deuses (1950), de Billy Wilder, teve 11. O Dia do Gafanhoto (1975), de John Schlesinger, concorreu a duas estatuetas. Barton Fink (1991), dos irmãos Coen, e O Jogador (1992), de Robert Altman, três cada um. Los Angeles, Cidade Proibida (1997), de Curtis Hanson, e Birdman (2014),de Alejandro González-Iñárritu, receberam nove indicações.

2) A nostalgia por baixo das sombras

Ainda que seja uma trama sobre traições e decadência, Mank também traz um olhar nostálgico, evocado desde os letreiros até a montagem que emula as fusões dos anos 1930 e 1940, passando pela trilha em que os habituais colaboradores de David Fincher, Atticus Ross e Trent Reznor, só utilizam instrumentos daquela época e pela majestosa e fantasmagórica fotografia em preto e branco. Que, por si só, já conta pontos na categoria, vide as recentes indicações ao Oscar de O Artista (2011), Nebraska (2013), Ida (2014), Guerra Fria (2018), Roma (2018) e O Farol (2019). Uma mirada saudosista para Hollywood também atrai a Academia, como comprovam O Artista, que concorreu a 10 estatuetas, La La Land (2016), que disputou 14, e Era Uma Vez em Hollywood (2019), que brigou por 10. Nessa leva também dá para incluir Cantando na Chuva (1952) e Ed Wood (1994), ambos indicados a dois prêmios, e Chaplin (1993), três.

3) Personagens reais

Netflix / Divulgação
Gary Oldman interpreta Herman J. Mankiewicz e desponta como candidato ao Oscar de melhor ator

Cinebiografias e reconstituições de fatos históricos já partem em vantagem na corrida ao Oscar a lista de exemplos seria imensa, mas vale dizer que em 12 das últimas 18 edições a estatueta de melhor ator foi para quem encarnou um personagem real. O portagonista de Mank é Herman J. Mankiewicz (1897-1953), roteirista que ganhou prestígio graças a uma batelada de comédias dos anos 1920 e 1930, como Jantar às Oito e Diabo a Quatro, nem sempre recebendo o crédito era uma espécie de bombeiro dos grandes estúdios. Um bombeiro incendiário: também era viciado em álcool, em apostas e em aforismos que não raro incomodavam os chefões de Hollywood. Seu trabalho mais famoso e o único oscarizado foi também o mais conturbado: o roteiro de Cidadão Kane (1941), coassinado pelo diretor Orson Welles (motivo de rusga entre os dois) e considerado o maior filme de todos os tempos. No papel de Mank, Gary Oldman pode brigar pelo seu segundo Oscar de melhor ator, novamente dando vida a uma pessoa que exisitiu ganhou pelo primeiro-ministro britânico Winston Churchill de O Destino de uma Nação (2017), ambientado na Segunda Guerra Mundial.

4) A homenagem inteligente

Netflix / Divulgação
Orson Welles (encarnado por Tom Burke) surge como se fosse um fantasma para Mank

O eixo dramático de Mank é a história por trás de Cidadão Kane, mas filmagens do clássico nem chegam a aparecer. Há um misto de reverência e irreverência por exemplo, o enigma proposto por Orson Welles, o significado de Rosebud, a última palavra dita pelo moribundo Kane, vira uma piada de cunho erótico. 

Por outro lado, Fincher pegou emprestado a estrutura não linear e o retrato de um país pelo rosto de um homem ("Eu sou só um americano", dizia o protagonista de Welles). No presente, em 1940, Mankiewicz, após um acidente de carro, é enfurnado em um rancho californiano, na companhia de uma secretária (Lily Collins), para escrever e entregar dentro do prazo o script de Cidadão Kane

Welles, na pele do ator Tom Burke, faz poucas aparições são sempre isso mesmo, aparições, como uma assombração em volta do protagonista. Flashbacks intercalam a narrativa, mostrando a relação de Mank com colegas como Ben Hecht e Charles MacArthur, mandas-chuvas como Louis B. Mayer, David O. Selznick e Irving Thalberg e, principalmente, William Randolph Hearst e Marion Davies. Ele, interpretado por Charles Dance (o Tywin Lannister do seriado Game of Thrones), era o magnata da comunicação que inspirou o personagem de Welles. Ela, vivida por Amanda Seyfried (de Mamma Mia), era uma atriz que se tornou amante e depois a esposa não oficial de Hearst, sua companheira na mansão com girafas e elefantes de San Simeon, na Califórnia.

5) História(s) de redenção

Netflix / Divulgação
Amanda Seyfried pode concorrer pela primeira vez ao Oscar na pele de Marion Davies, ex-estrela do cinema

Em vários níveis, Mank é um filme sobre segunda chance, um tema mítico não apenas no Oscar, mas na própria história dos Estados Unidos, um país nascido dos pobres e degradados ingleses que cruzaram o Atlântico em busca de recomeço e redenção.

Com Cidadão Kane, Herman J. Mankiewicz ganha a oportunidade única de refazer seu nome. Amanda Seyfried, que na vida pessoal lida, desde os 19 anos, com depressão, síndrome do pânico, transtorno obsessivo compulsivo (TOC) e ansiedade, agora tem, aos 34, a chance mais clara de conquistar sua primeira indicação ao Oscar (no caso, como atriz coadjuvante). Suas cenas como Marion são carregadas por uma mistura de vivacidade e melancolia, como se por trás do sorriso houvesse o reconhecimento de escolhas erradas. E o filme não deixa de ser um resgate do pai do diretor, o jornalista Jack Fincher (1930-2003). Foi ele o autor do roteiro, escrito na década de 1990.

6) Um diretor fora da zona de conforto

Aos 58 anos, David Fincher é um dos mais renomados cineastas contemporâneos dos Estados Unidos. Construiu sua carreira e sua fama assinando filmes sobre violência urbana, assassinos seriais e planos de vingança: Seven: Os Sete Crimes Capitais (1995), Vidas em Jogo (1997), Clube da Luta (1999), O Quarto do Pânico (2002), Zodíaco (2007), Millennium: Os Homens que Não Amavam as Mulheres (2011), Garota Exemplar (2014) e o seriado Mindhunter (2017). Mas só foi lembrado pela Academia de Hollywood quando saiu das esferas do policial e do suspense as únicas vezes em que concorreu ao Oscar de melhor diretor foram pelo drama O Curioso Caso de Benjamin Button (2008) e por A Rede Social (2010), que reconta a juventude de Mark Zuckerberg e os primórdios do Facebook. Pela lógica, digamos, Mank vai lhe trazer a terceira indicação.

7) O uso do passado para refletir a política atual

Netflix / Divulgação
Charles Dance (D) é William Randolph Hearst, magnataa da comunicação, e Arliss Howard, Louis B. Mayer, chefão de estúdio

No filme de Orson Welles, Charles Foster Kane é, no início de sua carreira, um jovem idealista.

Perdi US$ 1 milhão no ano passado, perderei US$ 1 milhão neste ano e vou perder US$ 1 milhão no próximo. Nesse ritmo, terei de fechar o jornal em 60 anos ele brinca.

Aos poucos, porém, o protagonista deixa-se corromper pelo poder. Torna-se o tirano da mídia, que, como diz o cinejornal fictício, primeiro apoiava e depois denunciava os mesmos políticos.

Em Mank, David Fincher retoma, por meio de seu protagonista, o embate entre integridade e ambição, mas vai além. Ao mostrar as engrenagens da fábrica de ilusões de Hollywood, tece um comentário pertinente sobre a era em que vivemos e, em ano de eleição presidencial nos Estados Unidos, dá uma estocada tardia na briga de Donald Trump pela reeleição, seguindo o caminho de Destacamento Blood, de Spike Lee, Os 7 de Chicago, de Aaron Sorkin, e da nova aventura de Sacha Baron Cohen como Borat.

Seu filme aponta como a verdade tornou-se maleável. A campanha de difamação comandada pelos grandes estúdios de cinema e por William Randolph Hearst contra Upton Sinclair (1878-1968), um escritor de esquerda preocupado com os trabalhadores que se candidatou ao governo da Califórnia em 1934, espelha a política de desinformação com seus acentos xenófobos dos dias de hoje. Mentiras, quando repetidas inúmeras vezes, podem ganhar contornos de fatos. 

Simbolicamente, quem encarna Sinclair em cena é Bill Nye, um cientista de 65 anos muito popular nos EUA graças a programas de TV em que se apresentava como The Science Guy. Na vida real, a ciência tem chances contra o engodo e a manipulação fartamente financiados e amplamente difundidos pelas redes sociais? Talvez a arte, ainda que aberta a interpretações, tenha de ser uma aliada, aquela que, por meio da ficção, sedimenta algo na cabeça do espectador de um filme um sujeito que, como define o Louis B. Mayer interpretado por Arliss Howard em Mank, compra uma lembrança, um sentimento, uma ideia. 

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