Mosul (2020), que está no top 10 dos mais assistidos na Netflix, é um filme de guerra americano incomum. O conflito contra o Estado Islâmico, no Oriente Médio, é visto pela perspectiva dos iraquianos. Visto e falado: recrutados sobretudo na Ásia e na África, os atores travam combates e diálogos exclusivamente no idioma árabe. Em uma dessas conversas, vale frisar, critica-se o modus operandi das forças militares dos Estados Unidos, interessadas na destruição dos alvos, mas não na reconstrução de um país.
O filme é baseado em uma reportagem da revista The New Yorker sobre um batalhão de elite do Iraque, a Swat de Nínive. Roteirista de O Reino (2007) — que é sobre uma equipe dos EUA que se infiltra para destruir uma célula terrorista na Arábia Saudita — e um dos autores dos scripts de Guerra Mundial Z (2013) e Crime Sem Saída (2019), Matthew Michael Carnahan estreia na direção sob a bênção dos irmãos Anthony e Joe Russo. A dupla responsável por Capitão América: Guerra Civil e Vingadores: Ultimato está na produção de Mosul, que guarda semelhanças e diferenças com Resgate (2020), outro filme de ação com o dedo dos Russo.
Como em Resgate, o cenário principal, por questões de segurança, teve de ser "dublado". Terceira maior cidade do Iraque, a destroçada Mossul foi reconstituída no Marrocos, onde se combinam os talentos do designer de produção Philip Ivey (da trilogia O Senhor dos Anéis), do diretor de arte Marco Trentini (de Falcão Negro em Perigo) e de Mauro Fiore, vencedor do Oscar de melhor fotografia por Avatar.
Se não há um astro do quilate de Chris Hemsworth, repete-se o cuidado na escalação de um elenco o mais local possível: o francês de origem árabe Adam Bessa (que trabalhou em Resgate), o iraquiano Suhail Dabbach e o jordaniano Is'haq Elias emprestam carisma e autenticidade aos três principais personagens.
Bessa é Kawa, um policial que, logo na abertura do filme, vê-se acuado, junto a outro tira, por soldados do EI. Acabam salvos pela equipe do major Jassem (papel de Dabbach), que inclui Waleed (Elias), sempre com um cigarro na boca. Kawa junta-se ao pelotão, apesar de provocar desconfiança de alguns dos novos colegas.
Onde, em Resgate, havia humor para aliviar a tensão de uma operação sobre a qual podíamos intuir os resultados, em Mosul há aflição: por não sabermos exatamente qual é a última missão da Swat de Nínive, nem estarmos seguros sobre a índole de Kawa, há a sensação de que tudo pode dar muito errado em questão de segundos. E aí, se as cenas de ação não são tão espetaculares (embora também sejam epidérmicas) quanto no filme anterior, a edição de Alex Rodríguez — indicado ao Oscar por Filhos da Esperança — garante imprevisibilidade e nervosismo.
Do ponto de vista dramático, o que conecta os dois títulos é o tema da paternidade. Em Resgate, o mercenário vivido por Chris Hemsworth foi contratado para salvar o filho sequestrado de um traficante de drogas indiano. No caminho, alguns personagens precisam lidar com a ausência da figura paterna, outros carregam um trauma devastador, e há quem se revele um tigre na defesa de seu filhote.
Em Mosul, Jassem trata seus comandados como filhos — inclusive se refere a eles assim a cada baixa nos embates ou emboscadas do Estado Islâmico. Ainda no primeiro terço da trama, o major manda parar o humvee em que se desloca na estrada para tentar acolher dois meninos que estão carregando o corpo do pai. Os irmãos se separam, porque o mais velho não quer quebrar a promessa feita ao pai. Já dentro do veículo militar, o guri se acomoda no colo de Waleed, que, após um instante de indecisão, mergulha os dedos da mão esquerda na cabeleira infantil. É um afago e um desafogo, um raro momento de intimidade em meio à brutalidade da guerra, um gesto de solidariedade e crença no futuro que vai ressoar lá na frente, quando enfim soubermos o objetivo daquela última missão.