Crimes de Família (2020) é um filme argentino na Netflix que foi sucesso de público no Brasil por retratar personagens e situações típicas também no lado de cá da fronteira. Estão em cena a tradicional família hipócrita, que cultiva na aparência os vínculos afetivos (vide a coleção de porta-retratos exibida na abertura) e dorme sob a proteção de um enorme crucifixo, mas é capaz de ameaçar, mentir, burlar, corromper; as empregadas domésticas que parecem "ser da casa", mas no fundo são alvo de preconceito e exploração; a elite que se sente, por desígnio divino, superior e intocável; a sociedade e a Justiça que olham diferentemente para as mulheres e para os mais pobres.
Se você, como eu, está entre os que consideram Crimes de Família um dos melhores filmes do ano, a dica é que dois longas-metragens anteriores do diretor Sebastian Schindel, 45 anos, entraram em cartaz na Netflix: O Patrão: Radiografia de um Crime (El Patrón, 2014) e O Filho Protegido (El Hijo, 2019).
Os dois são protagonizados pelo mesmo ator, Joaquín Furriel, que ganhou prêmios da crítica argentina e dos festivais de Guadalajara e Huelva por El Patrón. Os dois também se passam em Buenos Aires. E os dois têm estrutura e elementos semelhantes à de Crimes de Família.
Nos três filmes, Schindel intercala presente e passado — ou presente e futuro, como preferir. Em um tempo, acompanhamos os fatos que vão desembocar no outro, em que se desenrola a trama policial/judicial. Pelo menos um personagem de cada título cometeu algum tipo de delito, que o leva para a prisão e requer avaliação psicológica. El Patrón chega a formar um díptico com Crimes de Família, já que ambos mostram abusos cometidos contra trabalhadores. Mas há diferenças fundamentais entre as três obras.
El Patrón é baseado em uma história real, Crimes de Família parece uma história real, e O Filho Protegido é pura ficção — trata-se da adaptação da novela Una Madre Protectora, do escritor Guillermo Martínez.
Se em Crimes de Família o diretor Sebastian Schindel intriga o espectador, revelando aos poucos o que levou a doméstica Gladys a acordar algemada a uma cama de hospital, em El Patrón logo de partida sabemos que o humilde e analfabeto Hermógenes Saldivar assassinou Latuada (Luis Ziembrowski), dono do açougue do qual era, simultaneamente, gerente e escravo. Enquanto o advogado Di Giovanni (Guillermo Pfening) vai se inteirando do caso que pegou apenas para uma troca de favores com a assessora do juiz, interessado inicialmente apenas em reduzir a pena, vamos conhecendo o cotidiano degradante de Hermógenes — que sequer tinha direito a sua identidade: o patrão resolveu chamá-lo de Santiago, como a cidadezinha de onde veio.
De quebra, aprendemos sobre os legítimos podres do comércio de carnes, com seus truques sujos para repassar mercadoria estragada, por exemplo. Aliás, eis outra diferença significativa com Crimes de Família: Latuada é vil e grosseiro, ainda que tente engambelar Hermógenes, enquanto os personagens vividos por Cecilia Roth e Miguel Angel Solá são dissimulados.
Em O Filho Protegido, como em Crimes de Família, Schindel não entrega de cara o que o pintor Lorenzo Roy fez para parar na cadeia, onde uma amiga advogada, Julieta (Martina Gusman), vai libertá-lo. Mas neste suspense psicológico o cineasta está desinteressado das questões sociais que pautam os outros dois filmes. A trama é sobre o processo de afastamento do filho recém-nascido imposto pela esposa, Sigrid (Heidi Toni), o que vai incluir a chegada de uma misteriosa parteira nórdica. Talvez por estar lidando com elementos mais subjetivos e à beira do fantástico, com uma pegada de versão masculina de O Bebê de Rosemary (1968), Schindel, um documentarista de "nascença" (seus seis primeiros longas foram desse gênero), não acerta a mão, sobretudo na resolução da trama.
Então, meio que refazendo o título desta coluna, se você gostou de Crimes de Família, assista, agora mesmo, a El Patrón. Deixe O Filho Protegido para quando estiver com tempo sobrando e opções faltando.