Aclamado pela crítica internacional – 93% de aprovação no Rotten Tomatoes e nota 83 no Metacritic –, O Chão Sob meus Pés (2019) estava para estrear nos cinemas brasileiros em 19 de março, bem na semana em que a pandemia de coronavírus obrigou o fechamento das salas. Quase sete meses depois, enfim o filme austríaco pode ser assistido, agora no streaming: entrou em cartaz nesta quinta-feira (8) nas plataformas Now e Vivo Play. Eu vi e recomendo. Muito.
Concorrente no Festival de Berlim do ano passado, O Chão Sob meus Pés (Der Boden unter den Füßen) é o quarto longa-metragem da diretora Marie Kreutzer, que também assina o roteiro. A história gira toda ao redor de Caroline Wegenstein, a Lola, personagem muito bem interpretada por Valerie Pachner, atriz de Egon Schiele – Morte e Donzela (2016) e Uma Vida Oculta (2019). Trata-se de uma mulher que, contrariando o título, parece nunca estar em terreno firme.
Por causa da profissão – consultora de negócios –, está sempre no aeroporto, rumo à próxima empresa onde vai atuar para a redução de custos e de pessoal. Dorme mais em quartos de hotel do que em sua própria casa (a certa altura, chega a brincar que o fogão ainda deve estar dentro da caixa).
Também por conta do campo de atividade – eminentemente masculino e competitivo –, Lola não se permite exibir vulnerabilidades. Assim, convive com segredos: esconde seu relacionamento com uma superior, Elise (Mavie Hörbiger) e, sobretudo, a existência de uma irmã mais velha, Conny (Pia Hierzegger), que é esquizofrênica. Quando recebe a notícia de que Conny tentou se matar, a própria Lola começa a perder o controle. Atrasa-se para reuniões importantes, comete erros em relatórios, confunde os dias da semana.
Marie Kreutzer conta que, de forma inconsciente, sua protagonista foi inspirada na de Marnie – Confissões de uma Ladra (1964), de Alfred Hitchcock: "O que elas têm em comum é sua independência, sua maneira de viver sem precisar confiar em ninguém, recusando a ver sua própria escuridão. Elas estão totalmente sozinhas".
De modo sutil, sem o ritmo de thriller sugerido pelo trailer (veja abaixo), a diretora pega emprestado de Hitchcock o suspense em torno de um personagem que começa a duvidar da própria sanidade. Conny está mesmo telefonando e mandando bilhetes à mão?
Pouco importa a resposta. A esquizofrenia de Conny e sua tentativa de suicídio – sempre um pedido de socorro – são espelhos que ajudam a retratar retrata a ansiedade de nossos tempos, essa busca incessante por perfeição e produtividade (Lola está sempre correndo, seja de tênis ou de saltos), e a opressão das mulheres nos ambientes corporativos.
Este é um mundo onde elas podem ser preteridas em nome da "solidez" que os homens representariam, como justifica a própria Elise ao tirar Lola de um projeto. Este é um mundo em que elas, e quase nunca eles, como a pandemia evidenciou, é que precisam conciliar a vida profissional com a vida familiar. Um mundo em que um empresário sente-se à vontade para cortejar a protagonista dizendo que "outros homens já estariam com uma mão no meio de suas pernas". Um mundo onde elas, não raro, precisam desenvolver uma outra personalidade, criar uma personagem de si mesma, mais sóbria, implacável, reprimindo o afeto e sufocando as angústias debaixo de tarefas e mais tarefas. E ai de quem fraquejar. Afinal, este é um ambiente em que se "faz um 48" (48 horas seguidas de jornada!) e no qual, nas palavras da gestora de Lola, a síndrome de burnout, o esgotamento pelo trabalho, "é como lepra".