O sinal de que a instabilidade se aproxima é expresso por um gesto trivial: Leonardo Coelho Cruz, 53 anos, começa a esfregar as mãos, uma palma contra a outra, como se tentasse aquecê-las. A angústia começa geralmente à noite, quando ele está vendo TV no sofá da sala do apartamento que divide com os pais, no bairro Menino Deus, em Porto Alegre. “Você vai ser infeliz, vai viver sozinho, não vai ter ninguém, vai morrer, seus pais vão morrer”, sussurra a voz em seus ouvidos.
À dona de casa Marilia Coelho Cruz, 81 anos, ele apela:
– Ai, mãe, e agora? O que é que vai ser?
Habituada ao convívio com o transtorno mental do filho, ela responde:
– Para, Leonardo, te aquieta. Você sabe que não é nada.
O caçula, ainda perturbado pelo interlocutor invisível, renova o pedido de atenção:
– Mas eu continuo escutando!
Na tentativa de acalmá-lo e encerrar a conversa, Marilia repete a explicação a que já recorreu um sem-fim de vezes.
– Isso eu sei, você sabe. As vozes não vão parar nunca. Se pararem um dia, é porque você está curado. Como não tem cura, elas não vão parar. São as suas companheiras. Não pode ficar nem brabo, nem irritado, porque fazem parte da sua vida – orienta a idosa.
Diagnosticada há três décadas, a esquizofrenia de Leonardo, apesar de severa, não assusta mais a família. Leva a inevitáveis e compreensíveis episódios de perda de paciência, mas não é um bicho estranho faz tempo. Hoje em dia, Marilia sabe que, quando a inquietação das mãos do filho se inicia, é o momento de lhe dar um ansiolítico. O remédio faz efeito em cerca de uma hora. Logo após, será a vez do antipsicótico que é a base do tratamento. Em seguida, todos estarão se preparando para ir para a cama, e assim terminará mais um dia dos Cruz.
Enfermidades psiquiátricas graves são uma carga pesada não só para o paciente, mas também para os familiares. Despertar, fazer as refeições, conviver e dormir na casa que abriga um paciente com transtorno mental crônico é um desafio e um aprendizado para a vida inteira. No caso de Leonardo, que sofre de uma doença complexa cuja causa é desconhecida e já passou por várias fases – da catatonia aos inúmeros surtos que demandaram internações –, não há cura. Resta ao esquizofrênico e a quem o cerca, orientados pelos médicos, tentar descobrir o melhor ajuste da medicação para deixar o cotidiano o mais próximo possível da normalidade – a normalidade viável.
Grupo heterogêneo tem em comum a psicose
No final do século 19, a esquizofrenia foi descrita como um conjunto de doenças de traços semelhantes. Mais adiante, passou a ser considerada uma só, mas até agora não está claro se é uma enfermidade apenas ou mais de uma. Bastante heterogêneo, o grupo de pacientes tem em comum a psicose, caracterizada por momentos delirantes, com pensamentos que não correspondem à realidade, eventualmente acompanhados de alucinações (em geral, auditivas). A esquizofrenia costuma surgir entre o final da adolescência e o início da vida adulta. Nas mulheres, o aparecimento tende a ser retardado, devido a um provável fator protetor dos hormônios sexuais femininos – enquanto, entre os homens, a testosterona poderia adiantar a manifestação. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que a condição afete 23 milhões de indivíduos. Mais da metade deles, de acordo com a entidade, não recebe tratamento adequado.
A pessoa não será o que poderia ter sido. Há uma mudança de planos. Imaginávamos um determinado futuro, com um desempenho social, profissional, e temos que, necessariamente, nos adaptar a uma nova perspectiva.
MARIA INÊS RODRIGUES LOBATO
Psiquiatra, professora da pós-graduação em Psiquiatria e Ciências do Comportamento da UFRGS
A partir de uma desregulação dos níveis do neurotransmissor dopamina – o mais estudado para essa patologia –, ocorre um desequilíbrio em importantes circuitos cerebrais, explica o psiquiatra Paulo Belmonte de Abreu, professor da Faculdade de Medicina da UFRGS. Há uma perda funcional significativa, com o paciente tendo prejuízo na autonomia e nas capacidades e habilidades que lhe permitiriam trabalhar, estudar, manter relações afetivas e sociais e compreender o mundo a sua volta. A quantidade e a intensidade dos sintomas determinam o grau de incapacitação, acrescenta Maria Inês Rodrigues Lobato, médica do Serviço de Psiquiatria e do Programa de Esquizofrenia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA).
– A pessoa não será o que poderia ter sido. Há uma mudança de planos. Imaginávamos um determinado futuro, com um desempenho social, profissional, e temos que, necessariamente, nos adaptar a uma nova perspectiva – resume Maria Inês, professora da pós-graduação em Psiquiatria e Ciências do Comportamento da UFRGS.
Monólogos típicos são respostas a tormentos
Com a psicose, o paciente experimenta sensações e pensa viver situações que não são reais e que não desaparecem mesmo diante de uma argumentação lógica. Aspecto marcante da esquizofrenia, o solilóquio (monólogo) ajuda a compor o retrato mais comum que se tem do doente no imaginário popular: alguém que fala sozinho. O paciente responde aos comentários e comandos que escuta em sua alucinação auditiva: “Vai lá e mata ele”, “Seu pai é mau”, “Você não está vendo o que estão fazendo com você?”, por exemplo. Essas vozes podem atormentar o doente o tempo inteiro, na maior parte dos dias.
Há também, ainda que menos comuns, as alucinações visuais, as cinestésicas (alterações da percepção corporal, como a sensação de objetos ou mãos dentro do corpo ou de um órgão sendo espremido, outras pessoas morrendo dentro do próprio corpo) e as gustativas (gostos desagradáveis, como de coisas podres ou veneno). Os delírios, por sua vez, são marcados por ideias distorcidas e crenças irredutíveis que também não cedem com um diálogo que tente convencer o paciente a se dar conta de que aquilo que alega não é real. Delirante, o esquizofrênico pode achar que determinada pessoa o está perseguindo, escutando-o às escondidas ou difamando-o.
– O esquizofrênico tem a certeza de que existe um alienígena que está invadindo o seu corpo, tomando conta do mundo ou querendo matá-lo e só ele sabe disso, por isso ele tem que se manter cuidadoso. A crença é irredutível e não é removida com dados – exemplifica Abreu.
O esquizofrênico tem a certeza de que existe um alienígena que está invadindo o seu corpo, tomando conta do mundo ou querendo matá-lo e só ele sabe disso, por isso ele tem que se manter cuidadoso. A crença é irredutível e não é removida com dados.
PAULO BELMONTE DE ABREU
Psiquiatra, professor da Faculdade de Medicina da UFRGS
Para que se confirme o diagnóstico, o paciente tem de apresentar um quadro de psicose com duração de um mês – às vezes não chega a isso, se ele for medicado –, seguido de um período de cerca de meio ano em que não age como costumava anteriormente (devem ser excluídos outros fatores que podem atrapalhar a avaliação, como presença de depressão ou lesão cerebral ou ainda excesso de remédios). Os antipsicóticos (que reduzem os níveis aumentados de dopamina no cérebro) acalmam o surto, mas a ideia delirante pode perdurar. Um surto psicótico, se não tratado, é capaz de persistir indefinidamente, destaca Abreu.
– O que leva à internação é um surto mais grave ou causador de maior sofrimento. O paciente pode achar que as crianças andando de bicicleta no pátio são robôs enviados para enlouquecê-lo. Ele pode agir com violência com os outros ou ele próprio – descreve o psiquiatra, ressaltando que a esquizofrenia é a terceira principal causa de suicídio, atrás da depressão e da ansiedade. – Os pacientes não aguentam o sofrimento por tanto tempo. Às vezes, para não matar o pai ou a mãe, como mandam as vozes que estão ouvindo, eles matam a si próprios.
“Ele está vivo, está ali e você não tem o que fazer”
Marilia assiste às menções ao cinquentenário da chegada do homem à Lua na televisão e viaja em pensamento, de imediato, à infância do filho. Aos três anos, Leonardo acompanhou, fascinado, as imagens da expedição da Apollo 11, em julho de 1969.
– Vou ser astronauta! – garantia o pequeno, a caminho da escola, levado pela mãe.
Contida, Marilia tentava redimensionar o sonho do garoto, usando como referência a carreira do marido, Jose Luiz Cruz, hoje com 87 anos, à época funcionário do setor de manutenção de aeronaves da Varig.
– Astronauta você não vai ser, isso ainda não vai ter no Brasil. O máximo que você vai ser é piloto de avião – justificava ela.
Leonardo passou pela infância e pela adolescência como um menino dedicado aos estudos, obcecado pela precisão, inseguro com possíveis erros que cometia na realização das tarefas. Depois de um alerta da equipe pedagógica do colégio, foi levado para consultar com uma neurologista, que identificou uma rapidez de raciocínio que as mãos eram incapazes de acompanhar. Em outro momento, frequentou sessões de terapia com uma psicóloga, mas a esquizofrenia jamais havia sido cogitada até seus 22 anos, quando trabalhava na mesma empresa do pai, como técnico em eletrônica. Certo dia, Jose Luiz foi tirado do serviço pelo alerta de outro funcionário:
– Seu filho está com um problema, tem que ver o que é.
O pai encontrou o jovem quieto, imóvel, sem qualquer reação. Levou-o ao centro médico da companhia e já saiu empunhando o papel com a orientação que se tornaria tristemente frequente dali em diante: o encaminhamento para uma internação. Marilia não esquece da cena tenebrosa do filho chorando e falando sozinho, brigando com um interlocutor invisível, batendo com as mãos, como se tentasse interromper com violência o discurso que só ele ouvia. Ao deixar o filho em uma clínica, o casal foi orientado a ligar para saber atualizações do quadro e só retornar em uma semana. O diagnóstico não tardaria a ser sentenciado pelos especialistas.
– Aí o mundo cai num buraco, né? Fomos para casa e... meu Deus. Pensávamos: o que nós fizemos com ele? Agora que ele está precisando não podemos estar junto para ajudar! Ele lá também deveria estar pensando: “O que eu fiz para o meu pai e para a minha mãe para ficar preso aqui agora, de castigo, com pessoas que não sei nem quem são?”. A cabeça cheia de vozes e de minhocas em um mundo totalmente estranho ao dele. Como é isso? Como você se recupera desse trauma depois? Senti o mundo cair – recordou Marilia, na manhã de uma terça de chuva e trovoadas do final de julho. – Quantas vezes eu acordava de manhã e não queria me levantar! “Eu não acredito que está acontecendo isso, eu não acredito que está acontecendo isso!” É pior do que morrer, acho. Porque ele está vivo, está ali e você não tem o que fazer. Os primeiros tempos, o primeiro mês, o primeiro ano, o segundo ano, o terceiro ano... Custa muito para você ajustar isso aí. E não é para qualquer um.
Ao pisar de volta em casa, Leonardo não era mais o mesmo. Duro de medicação, não falava. Marilia, Jose Luiz e Viviane, irmã de Leonardo, tiveram de aprender o que significava o transtorno de nome estranho, sobre o qual não tinham qualquer informação. Aos poucos, começaram a aprender o que era manifestação da doença e o que não era, tentando delinear o Leonardo de antes no novo confuso cenário.
– Eu sentia uma dor horrível. O mundo tinha mudado de cor, as pessoas já não eram mais as mesmas. Esse momento não tem como explicar. A pior parte é essa aí. Você fica com raiva – diz a mãe.