O dedo roliço de unha bem feita se move sobre os contornos das pinceladas de tinta na folha de papel durante a breve explicação de como foi composta a árvore com flores.
– Eu comecei aqui assim, olha, e foi assim, assim, assim e assim. E aqui eu fiz assim, e assim, e assim, e assim, e assim. E vim aqui assim, ó. E assim, e assim, e assim. E aqui assim.
Uma pintura próxima, afixada na parede para a observação dos visitantes da exposição, também tem inspiração na natureza.
– Essa aqui é uma rosa e a filhinha dela, a filhinha dela, a filhinha dela – enumera.
Mais um trabalho de que a autora se orgulha:
– Daí a gente faz assim. Primeiro eu faço aqui, ó: assim, assim, e depois eu vou assim, e vou assim, e faço isso aqui, ó, assim, e assim, e assim, e assim, e aqui assim.
Madalena de Fátima Lima de Souza, ou Marlene, como prefere ser chamada, 52 anos, é uma artista forjada na Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro, no bairro Partenon, em Porto Alegre. É provável que seja moradora do antigo hospício centenário há mais de três décadas, mas não se pode mais precisar, depois de algumas internações e altas iniciais, a data da admissão definitiva – em um surto de fúria, a paciente arrancou páginas do próprio prontuário das mãos de uma funcionária e as rasgou, relegando parte de sua história à lata do lixo.
Em setembro, Marlene, frequentadora assídua da oficina, ganhou uma mostra individual de sua produção. A grande motivação da mulher nascida em Pinhal Grande, na Região Central, era vender todos os 130 itens, a maior parte deles custando R$ 13 ou R$ 20, para reforçar a poupança que guarda as economias da vida toda e conquistar a liberdade.
Pergunte a ela qual o seu maior sonho.
– A minha casa – responde, como se o objeto de desejo se materializasse a sua frente, permitindo a descrição dos detalhes. – Quero uma casa boa, toda de material, azul claro e por dentro toda amarelinha, com dois, três quartos, dois para botar as visitas quando chegarem, cozinha, sala, dois banheiros, um pátio bonito na frente. Vou botar umas roseirinhas ali. Queria que tivesse fogão, geladeira, uma geladeira boa, nova, uma mesa boa, nova, um sofá novo, mesa com cadeira nova, panela, que eu preciso de panela, essas coisas, pratos, tudo novo. Para o quarto, uma cama nova, um colchão novo e o roupeiro novo.
Marlene sofre de um distúrbio em estágio severo chamado de transtorno de personalidade borderline, caracterizado pela inconstância emocional e pela impulsividade. A intervalos imprevisíveis de horas ou dias, o indivíduo é tomado por sensações e emoções das mais distintas, ficando incapaz de exercer qualquer controle sobre seu comportamento – ama, odeia, estoura, retrai-se, ataca, acolhe, julga o outro como mau ou bom sem entremeios. Ocorre uma leitura distorcida das pessoas e dos relacionamentos, que são idealizados como perfeitos. Qualquer deslize é interpretado como algo proposital ou uma traição. Pela dificuldade de abstração, a ausência momentânea de alguém que deu uma breve saída pode ser vista como um trágico abandono. Tudo acontece de forma intempestiva, de súbito. O borderline se altera com a facilidade da transição de um interruptor que acende e apaga. É como se estivesse sempre tentando se conectar e houvesse uma ruptura: liga, desliga, liga, desliga.
Diz que é loucura. Mas eu não sou louca, não. Eu tenho problemas. Ninguém me explicou. Só disseram que eu tenho isso aí, que é loucura, que eu sou louca. Não me considero louca. Eu sou uma pessoa normal que nem as outras. Só que tenho problemas e me sinto triste às vezes. E as pessoas vivem dizendo coisa para mim, e eu fico mais chateada, e eu quero ir embora. E chamam guarda. Para que chamar os guardas? Eu não tenho doença nenhuma.
MARLENE, 52 ANOS
Paciente do Hospital São Pedro
– Ele vive mudando, vive no limite entre o tudo e o nada. É um padrão consistente de inconsistência emocional – descreve Roberta Rossi Grudtner, psiquiatra do São Pedro e embaixadora da Divisão Internacional da Associação Americana de Psicologia. – Não é uma pessoa que faz porque quer. Ela não fica superbraba ou supertriste ou superama porque quer. Vem aquela inundação emocional imediata e sem controle.
Existe a possibilidade de o paciente atingir o ponto da agressão física, contra os outros e si próprio, o que significa também risco de suicídio. O borderline tem de lidar com a sensação crônica de vazio existencial, a dificuldade de confiar no outro e a dissociação (acredita-se fora do próprio corpo ou em situações irreais). É comum que o transtorno esteja ligado a outros problemas, como comportamentos pautados pelo excesso – com a comida, com jogos, com gastos em dinheiro.
Marlene luta contra a doença mental há décadas, desde uma época em que não havia o entendimento e a variedade de terapias existentes na atualidade. O transtorno mental e comportamental sem tratamento inflige danos cerebrais permanentes. Quanto maior o período decorrido, maiores são os danos causados e mais difícil é a intervenção médica. Mesmo quando tratado, o paciente, depois de tanto tempo com a enfermidade instaurada, tem prejuízos inevitáveis – trata-se da característica da neuroprogressão, que são as alterações que a doença acarreta no cérebro com o passar dos anos. Ou seja, o cérebro de Marlene não é mais o mesmo.
O diagnóstico e o tratamento precoces, com o acompanhamento de uma equipe multidisciplinar, são fundamentais para o bem-estar do doente, para que tenha condições de estudar e trabalhar, e da família. No caso da pinhal-grandense, o círculo de convívio, desde a juventude, esteve quase completamente restrito à população da instituição de saúde.
Entre os profissionais que atendem aos 90 internos do São Pedro – fundada em 1884, a instituição chegou a abrigar 5 mil pacientes –, Marlene tem fama de "difícil", apesar de estar em uma boa fase hoje em dia, sendo bastante amável no trato. Nos momentos de maior agitação, reclama, grita, insiste, reivindica, xinga, repete, repete, repete. Ainda assim, tem crédito e é considerada uma porta-voz dos moradores, aquela que aponta o que não está bem. Certas vezes, teve problemas com o horário das refeições. Por chegar atrasada, encontrava seu prato servido e guardado. Se em cima do arroz houvesse um pouco de feijão, enfurecia-se e jogava fora toda a comida. Desentendimentos desse tipo eram remoídos ao longo de meses. Em outras situações, escalou árvores do pátio do hospital, e os bombeiros tiveram de ser acionados para resgatá-la.
Essa que por fora bate e faz e causa, ela tem outra pessoa por dentro, muito singela, sensível, romântica... É alguém que desenha flores.
BARBARA NEUBARTH
Coordenadora da Oficina de Criatividade do São Pedro
Na sua lembrança mais remota da paciente, a psicóloga e bacharel em Artes Visuais Barbara Neubarth, fundadora e coordenadora da Oficina de Criatividade, inaugurada em 1990, recorda-se dos seguranças do São Pedro procurando por Marlene em meio a uma confusão. Barbara deparou com ela e a convidou para entrar e trabalhar um pouco. Pediu que o guarda que estava no encalço da desordeira fosse embora. Marlene foi se acalmando, e a primeira produção da recém-chegada surpreendeu a professora.
– Foram flores muito pequenininhas. Pensei: tem outra ali por dentro. Essa que por fora bate e faz e causa, ela tem outra pessoa por dentro, muito singela, sensível, romântica... É alguém que desenha flores – rememora Barbara. – A flor é um símbolo de apaziguamento. Acho que as flores sempre foram para ela esse momento de apaziguar, de tentar se encontrar.
Nos encontros matinais da oficina, de segunda a sexta-feira, Marlene se dedica a bordar e a pintar. Pode passar horas sentada, absorta, fazendo o ponto enroladinho, apesar de o manuseio da agulha lhe provocar alguns furos nos dedos. Tem dias em que aparece mais nervosa, e as primeiras pinceladas saem com mais força. Com o projeto da compra do imóvel em vista, Marlene tem pressa. Acredita não dispor de minuto a ser desperdiçado, quer produzir muito, vender, aumentar as economias até que alcance os R$ 150 mil ou R$ 200 mil que considera necessários para adquirir a moradia dos seus sonhos. Em um único turno, conclui até 10 trabalhos em tintas guache e acrílica, quando o ideal, segundo a professora, seria ela se concentrar em apenas um, no máximo dois, com mais esmero.
– Senta, respira, faz mais devagar – pede Barbara.
Para acelerar a arrecadação, Marlene chegou a criar telas enormes, com o objetivo de vendê-las por R$ 300. Barbara tentou demovê-la, argumentando que o preço estava muito alto e que os produtos não teriam saída.
– Você está me agourando, não vou vender nada! – irritou-se a aprendiz.
– Quem sabe você faz uma promoção? – contrapôs a coordenadora.
– Você pensa que é porcaria o meu trabalho???
Barbara explica que a tinta permite gestos amplos, livres, enquanto o bordado é mais contido, exigindo dedicação a um ritmo mais lento. No trabalho com pacientes psiquiátricos, a técnica escolhida tem grande relevância. O lápis, por exemplo, "segura" mais do que a tinta. Quando o paciente se encontra muito agitado, procura-se dar a ele um material que o refreie e acalme. Marlene acabou escolhendo ela mesma seus materiais prediletos. Tem um traço que por vezes parece infantil, retratando motivos singelos. Além das muitas flores, há corações (em referência a amores do passado) e borboletas.
– As borboletas pousam nas flores, e eu vi elas pousando e fiz as borboletas que elas são da natureza.
"Diz que é loucura"
Ao observar as fileiras de pinturas, a professora avalia positivamente o resultado:
– Ela traz uma força nesse trabalho, inclusive no gesto, nessa pincelada.
O problema mental grave não impediu Marlene de criar laços. Ela chama de "mãe", entre outras, a assistente social Denise Kosachenco, que a levou ao salão de beleza para se preparar para a abertura da exposição, e a nutricionista aposentada Marli Aguiar Carvalho, 75 anos, sem vínculo com o hospital, com quem topou em uma das festas de final de ano da entidade. Depois de um rápido contato, Marlene perguntou a Marli:
– A senhora quer ser minha mãe?
Marli, com duas filhas, aceitou a terceira. Uma vez por mês, Marlene passa um domingo com a "mãe adotiva" e, ao final do ano, comparece também no Natal. A visitante se dá bem com todos e ajuda no preparo do cardápio: uma salada de tomate e cebola que Marli jura jamais ter degustado igual. Afetuosa, Marlene pede colo, repousando a cabeça sobre as pernas da aposentada.
– Sou apaixonada por ela – derrete-se Marli, que na exposição adquiriu por R$ 80 uma pintura com flores em amarelo e laranja. – Ela é muito inteligente, muito esperta, muito carinhosa, muito asseada.
Namoricos, Marlene também teve. De um relacionamento, considera-se inclusive viúva. Um senhor bem mais velho, também internado no hospital, cortejava-a com melancias e garrafas de Coca-Cola. Enlutada, Marlene garante ter adoecido, ficando "magrinha assim, desse tamanhinho aqui" por um ano. O outro par foi um rapaz esquizofrênico, merecedor de uma pintura com corações na exposição da oficina. Os dois namoraram sério, andavam de mãos dadas e davam beijo na boca – ela se contorce de vergonha e esconde o rosto diante das perguntas indiscretas da repórter –, até que Marlene encrencou quando o amado deu um cigarro para "uma mulher lá".
– Vai e não volta! – sentenciou Marlene à época. – E ele não voltou mais. Faz 14 anos – conta, a meio caminho entre o riso e a tristeza.
Interditada (considerada incapaz para a prática de determinados atos da vida civil, como votar e receber seu benefício do INSS), Marlene tem um curador responsável por ela, um funcionário aposentado do hospital. Com a comercialização dos trabalhos exibidos no mês passado, ela arrecadou R$ 766. Já ambiciona voos mais ousados.
– Agora eu quero uma exposição em São Paulo – revelou, cobiçando o feito de outra interna.
Antes da mostra, Marlene andava tristonha, chorosa. O evento elevou seu estado de espírito.
– Me sinto bem. Só que eu tenho uma doença: bandelait (sic). É o que me disseram.
Pergunto se ela sabe o que borderline significa.
– Diz que é loucura. Mas eu não sou louca, não. Se eu fosse louca eu não trabalhava em casa de família para cuidar de criança e tudo. As pessoas me dizem quando brigam comigo: "Eu não acredito em você! Você é louca!". Eu tenho problemas. Ninguém me explicou. Só disseram que eu tenho isso aí, que é loucura, que eu sou louca. Eu não sou louca. Não me considero louca. Eu sou uma pessoa normal que nem as outras. Só que tenho problemas e me sinto triste às vezes. E as pessoas vivem dizendo coisa para mim, e eu fico mais chateada, e eu quero ir embora. E chamam guarda. Para que chamar os guardas? Elas não se garantem? Eu não tenho doença nenhuma. Eles gostam de botar doença nos outros.
De acordo com a paciente, ela é filha de um casal de agricultores que teve oito filhos, descontados os que a mãe perdeu durante a gestação. Habitavam "uma casa de humildezinho, de madeira". O trabalho na roça começou cedo, impedindo a regularidade na escola – as crianças apareciam em um dia, faltavam em quase todos os outros. Segundo Marlene, ela não concluiu nenhuma série. Sabe apenas assinar o primeiro nome – o de batismo e o que escolheu –, não consegue nem interpretar os números do relógio. A plantação familiar dava fumo, milho, trigo, feijão, batata, mandioca. Organizava-se um revezamento na cozinha, onde a menina começou a lidar com as panelas por volta dos cinco ou seis anos. Voltam lembranças do pai bebendo e batendo na mãe. As tarefas mais horrendas, narra, eram o abate de porcos e galinhas: a agitação e o sofrimento dos animais, o sangue, a limpeza dos bichos antes do cozimento.
– Tenho medo de matar porco, nunca matei. Vi meu pai matando. Pegou e enfiou a faca e botou o sabuguinho praquele sangue. O porco gritando... Mas é a vida, né? É para comer que Deus botou – conforma-se.
A partir da pré-adolescência, o relato se fragmenta. Marlene fala ter saído do campo por volta dos 12 ou 13 anos. Depois da morte dos pais, ficou sozinha. Trabalhou como empregada doméstica em residências. Teria passado por Agudo e Encruzilhada do Sul antes de desembarcar em Porto Alegre. Engravidou e, já no São Pedro, teve a filha encaminhada para adoção.
– Cabelinho cor de ouro e olho bem azul. Queria criar, mas não deixaram.
Ainda a infância
Marlene eventualmente passa temporadas com parentes. Foram feitas tentativas para que a paciente morasse com eles ou em um dos residenciais terapêuticos ligados à instituição, mas ela acabou voltando. Os sentimentos são contraditórios: ora ela anseia ter o próprio canto em outra cidade, ora alega preferir morar nas cercanias do hospital, ora não quer mais sair de onde está.
A um e outro, Marlene solicita ajuda e dita cartas que são enviadas a um juiz. Depois de tanta insistência, uma equipe assistencial de sua cidade natal a visitou recentemente. De acordo com Gilberto Brofman, diretor técnico do hospital, o caso tem dois desfechos possíveis: Marlene pode ser realocada em um residencial terapêutico na Capital, ligado ao São Pedro, ou no Interior. Nesses locais, os pacientes convivem em pequenos grupos e contam com o suporte de funcionários para a limpeza da casa, a alimentação, as compras e a administração dos remédios. Seria uma solução intermediária, destaca o diretor, entre o tudo (liberdade completa) e o nada (a continuidade da situação atual indefinidamente).
– Cada um tem seus sonhos, né? Mas com autonomia completa não é viável – comenta Brofman, acrescentando que Marlene é uma das prioridades no momento. – Estamos com 30 pacientes em processo de saída. Os 60 restantes não sairão porque têm muito comprometimento e não têm familiares que abracem a causa.
O quarto de Marlene na unidade Celestino Prunes – ela é uma das poucas com o privilégio de um cômodo privativo – mistura as necessidades da condição de adulta com a inocência da infância. Há geladeira, ar-condicionado, panelas, potes plásticos, jogos de lençol nunca usados ainda nas embalagens e quatro imagens de Nossa Senhora Aparecida, a quem a moradora pede socorro quando se sente desesperada e chora muito.
Sobre a colcha colorida bem estendida sobre a cama, estão as bonecas Adrianinha e Bruna, precocemente trajada com vestes natalinas. Adrianinha ri e fala quando lhe pressionam a barriga. Marlene parece uma criança encantada com as habilidades quase mágicas do brinquedo. "Oi, mamãe", saúda a "filhinha". A paciente sorri e aperta o botão sem parar: "Que dia lindo!", "Vamos brincar?", "Estou com fome".
– Ela está com fome, pobrezinha... – compadece-se.
Adrianinha então expressa algo sobre medo. Intrometo-me na conversa das duas:
– Do que você tem medo, Marlene?
Ela responde prontamente.
– Às vezes, eu tenho medo de morrer. Medo de que nunca mais a gente vá viver depois. Eu queria viver para sempre.
Uma folha está preenchida até a metade com parte da lista de convidados para a sua festa de 53 anos, agendada para o dia 16 de janeiro: Aneli, Ana, Rosângela, Bárbara, Cíntia, Marco, Ari, Armindo, Regina, Gisele, Renata. Em geral, são grandes comemorações para os funcionários no Galpão Crioulo do hospital psiquiátrico, com fartura de refrigerantes e salgadinhos. A cada um, é determinado especificamente o que deve ser dado à aniversariante. Marlene não gosta que as regras sejam descumpridas – certa vez, devolveu um presente de imediato, sem esconder seu descontentamento ao abrir a embalagem e encontrar um colar.
– Eu te disse que não gosto de bijuteria! Eu tinha te pedido uma toalha de banho! – protestou, furiosa.
São 11h30min de uma sexta-feira de quase primavera, hora do almoço. Encerramos a entrevista para que ela não perca a refeição. O quarto, de janela gradeada, tem a porta trancada com a chave que pende de um cordão no pescoço de Marlene. Na despedida, ela informa que já estou convidada para a celebração do início do ano que vem.