Aos pés da Serra de São Martinho, na região central do Rio Grande do Sul, os cerros cobertos de mata retiram o horizonte da vista, e o emaranhado de estradinhas de chão abertas pelos imigrantes italianos da Quarta Colônia vai levando aonde nem Judas chegaria não fosse a ajuda de uma ou outra placa.
É o caminho do Cafundó, o Cafundó mesmo, de batismo oficial e escrito com o C maiúsculo, lugar onde a dona de casa Vera Quatrim Dal Molin, 55 anos, e o marido dela, o agricultor Dilmar Dal Molin, 49, escolheram para travar a luta diária pela sobrevivência. Trata-se de uma localidade dentro dos limites de Ivorá, município com pouco mais de 2,1 mil habitantes – a maioria deles na zona rural – a cerca de 50 quilômetros de Santa Maria.
Não há quase nada por lá, o que talvez justifique o gracejo do nome, que foi, anos atrás, até motivo de vergonha para Vera.
– A gente achava ruim o nome, não gostava. Mas agora fiquei velha, não tenho mais vergonha. E foi aqui que, com honestidade e muito trabalho, criei meus filhos. Esse chão é meu, vou morrer aqui, por que ter vergonha? – ufana-se a mulher, no chalé de madeira ao sopé de um dos morros que compõem a paisagem.
A comunidade do Cafundó é uma espécie de resistência aos apelos da cidade e às dificuldades naturais do lugar. Não passa de duas dezenas de famílias, apostam os moradores, já que dados oficiais não dão conta do número atual exato da população. As plantações de milho, feijão, fumo e outras culturas assentam-se em peraus impiedosos que exigem dos moradores força nas pernas e serenidade para esperar que do terreno pedregoso germine fartura.
Vera já sofre as dores provocadas pelo esforço contínuo de apoiar no quadril os cestos com batata e alimentação dos animais no sobe e desce das trilhas íngremes. Esperar pela terra é a sina de quem se destina a existir por aquelas bandas, desde muito antes de os imigrantes italianos abrirem as primeiras picadas e linhas da Quarta Colônia.
O Cafundó, pelos registros históricos de Ivorá, foi ocupado por gente de São Martinho da Serra e Júlio de Castilhos, gente esta que fugia da violência da Revolução Federalista de 1893. Boa parte era formada por descendentes de portugueses, negros ou indígenas que habitavam as proximidades da sesmaria dos Mello, o grande proprietário da área de aproximadamente 3 mil hectares na época do Império.
– Os italianos não foram os primeiros a chegar no Cafundó, mas sim pessoas da região que queriam se esconder das lutas, daqueles tempos de degola nos campos mais altos. Só mais tarde é que os colonos começaram a adquirir essas terras, porque as áreas mais planas, das várzeas, já estavam ocupadas pelos alemães. Mas, desde aquela época, sempre foi um lugar escondido – conta o professor de História Sergio Venturini, um ivorense dedicado à memória do município.
Venturini explica que, muito antes da imigração de famílias italianas do Vêneto e de Friuli, em 1883, Cafundó e a comunidade de Barreiro, outra nos limites de Ivorá, registravam a presença de povos indígenas, que já tinham contato com o cristianismo por conta do primeiro período das reduções jesuíticas no Estado – a Redução da Natividade ficava onde atualmente é Júlio de Castilhos.
Acredita-se que esses locais periféricos da região tenham sido palco dos primeiros contatos entre imigrantes italianos e nativos. Inicialmente, os novos moradores vindos da Europa ignoravam costumes, língua e cultura dos locais, a quem chamavam, não importando se negros ou índios, de "nacionais", ou "brasileiros", por vezes, como uma maneira de distingui-los pejorativamente dos italianos.
Nas levas seguintes de novos proprietários de terras no Cafundó, estava a família do agricultor Alexandre Paulo Simonetti, 75 anos. Ele chegou ao local aos quatro anos, acompanhando os pais e outros 10 irmãos e de lá não arredou mais pé. Saíram da chamada Linha Simonetti, a oito quilômetros dali, em busca de mais espaço para plantar, ainda que o relevo acidentado pouco oferecesse a uma roça plana.
– Aqui, a gente planta com espingarda e colhe com o laço – diverte-se Simonetti, apoiando-se no ditado popular entre os colonos para explicar a dificuldade de se trabalhar naqueles terrenos.
Repolho na brizoleta
O Cafundó já teve mais plantações e mais gente também. Muitos dos antigos moradores morreram e outra parte preferiu seguir rumo à cidade, num movimento que desfigura a vocação dos mais jovens para a vida no campo – não só em Ivorá, mas também em outras cidadezinhas da Quarta Colônia.
– As lavouras são limitadas, porque há muito cerro. Então, o pessoal vai embora por falta de condições – diz João Paulo Simonetti, filho de Alexandre e atual morador do centro de Ivorá.
Vera também lembra que, anos atrás, a localidade tinha mais atrativos. Vizinha da antiga "brizoleta" (a escola criada em 1960 por Leonel Brizola quando governou o Rio Grande do Sul de 1959 a 1963 e na qual ela estudou até a quarta série), a moradora recorda dos adjutórios, frequentes nas comunidades rurais e católicas da região, e das celebrações que reuniam gente de linhas vizinhas ao Cafundó em partidas de bocha e futebol. O período na escola era divertido e valorizado. Ivorá tem uma tradição em educação. Quando ainda pertencia a Júlio de Castilhos, foi o primeiro distrito do Rio Grande do Sul a ter uma escola pública com Ensino Médio.
A cidade é, pela forte tradição católica, um celeiro de padres. Por anos, funcionou no atual prédio da prefeitura uma espécie de pré-seminário para rapazes na modalidade de internato. O empreendimento foi idealizado por Monsenhor Busato, o primeiro pároco do município depois que a Capelania de São José do Núcleo Norte, antigo nome de Ivorá, tornou-se uma paróquia, em 1918.
A liderança religiosa de Busato, aliás, até hoje é motivo de controvérsia na comunidade. É venerado pelo espírito empreendedor e por obras que deixou na cidade, mas, ao mesmo tempo, retratado como um homem severo e implacável na disciplina de seus fiéis. Em seu livro Ivorá – Sangue Italiano na Quarta Colônia, Venturini descreve a figura do religioso como protagonista de episódios de violência, como uma bofetada em uma noiva e um pontapé, à porta da casa canônica, em um viúvo que havia casado novamente sem as bênçãos do pároco.
Monsenhor Busato também mantinha seu rebanho atento ao que chamava de "ameaça protestante". Em áreas de colonização alemã da Quarta Colônia, via-se as religiões protestantes ganharem força, e ele, orientado por circulares enviadas pelos bispos, deixava claro a excomunhão daqueles que se aventurassem longe da Igreja Católica. O povoado vivia, conta Venturini, sob o medo onipresente dos anos 2000, pois acreditava-se que seria o fim do mundo, do terceiro segredo de Fátima, à época não revelado pela Igreja, e do diabo.
– As pessoas tinham muito medo. Onde fosse, ele (Busato) queria saber se tinha gente fazendo reuniões dançantes ou culto protestante. Não se podia dançar. Enquanto o Monsenhor existiu, não se dançou em Ivorá. Teve gente que morreu sem nunca ter ido a um baile – conta o professor.
O Cafundó também entrava na área de jurisdição de Monsenhor Busato, mas por lá pouco se lembram dele. A herança educacional dos primórdios da cidade ficou relegada às lembranças. As crianças atravessavam o barro, encaravam o frio dos dias de inverno para aprender a "ler e fazer conta" e aproveitar a merenda, feita na instituição mesmo.
– A gente comia repolho temperado. Era bem bom. Sempre tinha – recorda Vera.
A brizoleta, oficialmente chamada Escola Municipal Senador Alberto Pasqualini, em homenagem ao político que virou o filho mais ilustre de Ivorá, quando teve as atividades escolares canceladas em 1995, tornou-se uma espécie de salão comunitário, onde ocorrem missas mensais, palestras e encontros da terceira idade, cada vez mais raros.
– Olha, era muito divertimento por aqui. Faziam as promoções na comunidade. Não tem mais nada disso. Por quê? Não sei. Só sei que era tudo diferente – lamenta Vera, em frente ao antigo colégio e ao campo de futebol tomado pelo mato.
Turismo no Cafundó?
O tempo no Cafundó passa devagar, marcado por verões escaldantes e invernos úmidos, entrecortados por um ou outro episódio rumoroso. Diferentemente das grandes cidades, a violência não faz parte do dia a dia de quem vive por lá.
O que mais tira o sossego da Polícia Civil e da Brigada Militar são os abigeatos e os rebuliços por brigas em bailes do interior, mas, em 2012, um agricultor foi morto a pauladas em casa, vítima de latrocínio. Um ano depois, dois homens foram presos pelo crime. O assassinato brutal comoveu e assustou os moradores da localidade, desde então mais atentos ao movimento de estranhos que volta e meia cruzam por ali em busca de aventura.
Cafundó, além das gentes, esconde belezas naturais quase inexploradas pelo turismo. Há pelo menos duas cachoeiras na área, mas que ainda não integram roteiros turísticos. Ivorá tem mais de 30 cascatas e piscinas naturais que atraem visitantes para a área rural do município nos meses mais quentes.
– As cachoeiras do Cafundó têm acesso muito difícil, fica complicado de levar o pessoal lá por causa da falta de segurança e da trilha. É no cafundó mesmo – reforça Leandro Sarzi, engenheiro elétrico formado pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Sarzi diplomou-se e voltou para sua terra natal para abrir um comércio e se dedicar ao projeto Caminhos de Ivorá, que promove roteiros pela Quarta Colônia, incluindo a visita a pontos turísticos, como o Monte Grappa e a Cruz Luminosa, e almoços preparados por famílias de origem vêneta ou friulana.
O relevo da região atrai ao longo do ano grupos de trilheiros que encontram terreno ideal para o esporte. O Cafundó, por ser um cafundó, não está contemplado na programação oficial dos passeios, mas o entusiasmo de Sarzi em impulsionar o turismo local já vislumbra o potencial da localidade, banhada pelo Rio Mello, com cascatas escondidas e córregos.
O mistério do nome
Décadas atrás, atribuía-se ao nome dessa remota localidade qualquer infortúnio ou a ausência do progresso. Pensou-se até em trocá-lo, mas a falta de consenso entre moradores não só manteve a alcunha como também sequer conseguiu oficializar o nome de uma das sangas do lugar, deixando o curso d’água ser chamado ao gosto de cada um.
E não é que mais tarde foi justamente a denominação de Cafundó que deu fama ao lugarejo? Programas de TV de diversos lugares do país (incluindo o Fantástico, anos atrás), estudantes universitários em busca de um peculiar objeto de estudo, fotógrafos e repórteres aportam por lá para entender o lugar onde não tem quase nada aos olhos de quem pensa que tem tudo, mas quase tudo para quem, por opção ou destino, vive nesse esconderijo protegido pela natureza.