Brasil, terra de convivência pacífica entre os povos ao ritmo da música tropical sob um sol quente em paisagens paradisíacas. Um olhar atento aos documentos que contam a História do país nos séculos 19 e 20 atesta: essa assertiva pode ser falsa.
Entre esses documentos estão as históricas fotografias recolhidas pelo Instituto Moreira Salles (IMS) junto a 30 coleções, públicas ou particulares, para uma exposição (que já esteve em cartaz no Rio de Janeiro e que pode ser visitada em São Paulo), e agora reunidas em um livro-catálogo de edição caprichada. Intitulado Conflitos – Fotografia e Violência Política no Brasil 1889-1964, o projeto apresenta um panorama da história da fotografia do país para além das representações icônicas de autores como Marc Ferrez e Pierre Verger, que documentaram Rio de Janeiro e Bahia. "Livro e exposição reúnem imagens de revoltas, insurreições e guerras civis", escreve, na apresentação, a curadora do IMS Heloísa Espada. "A imagem do país pacífico de população cordial se esvanece. O que se vê são fragmentos de uma história de disputas políticas e armas: o olhar ingênuo do jovem soldado em contraste com mortos, feridos, cenas de escombros, depredações, expressões de desolação, perplexidade e fúria".
Canudos, a Guerra do Contestado, as revoltas Naval e da Vacina. A Revolução de 1930, a Coluna Prestes. Lampião e os conflitos no cangaço. O sul do Brasil, especialmente o Rio Grande do Sul, aparecem em destaque, com imagens chocantes da Revolução Federalista, da chamada Revolução de 1923, da ascensão e queda de Getúlio Vargas e da Campanha da Legalidade – que encerra o período coberto pelo projeto, deixando de lado a violência oficial da ditadura militar instaurada em 1964.
"A iconografia de 1964 é difusa e, quase sempre, controlada", comenta Heloísa Espada, citando como exemplo o episódio de tortura e morte de Gregório Bezerra, um dos líderes da insurreição comunista de 1935 e de outros movimentos de camponeses, que em 2 de abril de 1964 teve o corpo arrastado pelas ruas do Recife, enquanto militares incitavam seu linchamento. Do ocorrido, sobreviveram poucas imagens e muitos depoimentos. O que resta de outros momentos históricos do país em convulsão, no entanto, não é pouco. A seguir, GaúchaZH antecipa um dos textos do livro-catálogo junto a uma de suas imagens mais impressionantes: a pose de militares e de um carrasco registrando o momento de uma degola, um ano após o estouro da Revolução Federalista de 1893.
A República da Degola
Por Angela Alonso
Professora do Departamento de Sociologia da USP, pesquisadora do Cebrap*
Sebastião Juvencio olha para você. De frente. Sem pejo, sem remorso. Faz o que é certo, o que é justo. Podia dizer como Fafafa, no Grande Sertão: Veredas: "Pois, amigo, a gente tem lá meios de guardar prisioneiro vivo? Se degola é da banda da direita para a esquerda".
Sebastião é senhor de seu ofício. Praticante experimentado. Tem talvez um laivo de vingança por tantos de sua cor, tantas vezes, por tantos séculos, no lugar do debaixo, cuja face a mão esquerda escamoteia. A direita segura decidida o instrumento de trabalho. A faca parece pequena para o perímetro do pescoço da vítima, que respira, sabe, um ar que será seu último. Está de joelhos, paralisado, resignado. Constrito. A câmera obrigava longo imobilismo, dando ao futuro degolado tempo de imaginar seu destino.
Sebastião não teme, não treme, não fraqueja. Os outros o admiram. São sete, como os pecados. Ali está, dono da cena, protagonista do ato que está em vias, suspenso por um instante, para que a modernidade da câmara capte em plenitude a barbárie da sua arte.
Degolar é costume e ciência. Não serve qualquer mão, nem qualquer estômago. Ação precisa, frequente e longeva. Praticou-se na Confederação dos Tamoios, nos começos do país, e pratica-se ainda hoje, nos presídios. Toda vez que os brasileiros se imaginam civilizados juram banir a selvageria. Foi assim no princípio da República, quando a promessa era expandir trabalho livre, secularizar o Estado, difundir a educação, urbanizar. A palavra de ordem era progresso.
O ímpeto de modernizar foi contra-arrestado por movimentos armados de contestação, que variaram quanto ao perfil dos participantes, aos objetivos, às estratégias. Durante toda a Primeira República, o Estado esteve sob disputa e a perigo. Os setores que o ocuparam monopolizaram a violência com sucesso apenas relativo. Ora enquadraram, ora foram enquadrados.
Seu domínio sofreu o revide de movimentos de elites sociais insatisfeitas com a linha do governo e de mobilizações de estratos sociais baixos contra intervenções em seu modo de vida. Assim nasceram guerras, revoltas, insurreições e guerrilhas, tentativas ora de tomar o Estado, ora de escapar ao seu domínio.
Tudo longe do mito do povo pacífico. No andar de cima e no debaixo, nas cidades e nos campos, na caatinga e nos pampas, a Primeira República foi tempo de briga, na base de espada e revólver.
O avanço tecnológico trouxe novas formas de viver, diminuiu distâncias, com telégrafo, tipografia, locomotiva, mas também novos meios de matar, a dinamite, metralhadora ou canhão. As armas modernas chegaram devastando, mas nunca substituíram a navalha na carne. Civilização e barbárie não se sucederam, nem se anularam, se amasiaram. O sangue esguicha do mesmo jeito, de faca ou de tiro.
* Este texto faz parte do livro-catálogo "Conflitos – Fotografia e Violência Política no Brasil, 1889–1964" (2018), publicação editada pelo Instituto Moreira Salles.
O livro
A exposição Conflitos – Fotografia e Violência Política no Brasil 1889-1964, que já foi apresentada no Instituto Moreira Salles (IMS) do Rio de Janeiro, pode ser visitada no IMS de São Paulo (Av. Paulista, 2.424, galeria 3) até o dia 29, de terças a domingos, das 10h às 20h. O livro-catálogo, com 427 páginas, está à venda por R$ 129,50. Para comprá-lo ou obter outras informações sobre o projeto acesse conflitos.ims.com.br.