Por Denise Stumvoll
Técnica do Acervo Fotográfico do Museu da Comunicação Hipólito José da Costa, defendeu mestrado sobre Lunara no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da UFRGS
Durante a 11ª Bienal de Artes Visuais do Mercosul, nas Salas Negras do Margs, o visitante depara com 20 fotografias de autoria de Lunara, que fazem parte do álbum Vistas de Porto Alegre – Photographias Artísticas, do acervo fotográfico do Museu da Comunicação Hipólito José da Costa. O que essas imagens nos dizem sobre a transição para o século 20 e qual a sua participação no discurso curatorial de Alfons Hug e da curadora-adjunta Paula Borghi, sobre o amálgama cultural formado pelo triângulo do Atlântico, tema central desta edição da Bienal?
Ao entrar no Margs, no hall principal, vemos uma projeção de vídeo da artista Martha Atienza que impressiona pela beleza de um oceano filmado a partir de uma embarcação. Isso remete ao elemento água e sua presença em outros trabalhos, o que nos coloca no cerne de um paradoxo: trata-se de um elemento que nos separa de outros territórios, mas também nos une.
No fim da década de 1970, Eneida Serrano, jornalista e fotógrafa, realizou uma pesquisa pioneira com as fotografias de Lunara, que revelavam intercruzamento entre arte e fotografia e instigavam pelo aparecimento de afrodescendentes, gaúchos e alemães. Praticamente inédito até então, esse álbum é um importante documento fotográfico por apresentar uma suposta hibridização cultural. Possivelmente dirigido a um público de outras latitudes, pelos títulos bilíngues (em português e alemão), pode ser considerado como tendo uma função similar à do cartão-postal, dando a conhecer o local em que nos encontramos, como um convite para que seja visitado. No entanto, o processo fotográfico em gelatina e prata, o tamanho, o passe-partout das fotografias e sua montagem em álbum como um portfólio de artista indicam ter como destino o circuito de arte, no qual Lunara foi um dos pioneiros. Atingiu notável reconhecimento, com participação em publicações importantes no Brasil e no Exterior, como a inserção da fotografia Aguadeira na revista francesa Photo-Gazette no fim da década de 1890.
As fotos de Lunara nos mostram atividades na natureza produtiva, que podem ser interpretadas como um valor germânico, e a ambiência do trabalho de afrodescendentes, aguadeiros e aguadeiras. Temos então um encontro cultural instigante, em um contexto histórico apegado às teorias evolucionistas, favoráveis a um branqueamento cultural. Lunara estaria abordando essa hierarquização social e cultural a contrapelo, para usar uma expressão de Walter Benjamin?
Nas suas fotografias abrem-se canais humorísticos e poéticos que compõem uma narrativa visual prenhe de camadas simbólicas que procuram zombar de ideias limitantes pré-estabelecidas sobre relações culturais. No pensamento positivista e científico da época, naturalmente a fotografia tem essa função, pois ela mesma confere autenticidade e visibilidade ao que mostra, nos iludindo em querer ser um reflexo do real e, simultaneamente, sendo uma ficção. Lunara parece brincar com esses entendimentos. Suas fotos são um amálgama entre documento e ficção.
O fotógrafo nos leva aos territórios da cultura negra na cidade por meio do curso sinuoso do Arroio Dilúvio, em regiões conhecidas como IIhota, Riachinho, Praia do Riacho, na região atual dos bairros Cidade Baixa e Menino Deus. E, ainda, por outros bairros mais afastados, então conhecidos como arrabaldes da Glória e Teresópolis, com suas chácaras com construções de pau a pique, pelas regiões ribeirinhas do lago Guaíba e pela região da Várzea, atual parque Farroupilha, ou campo da Redenção, como era chamado antigamente, com seu trânsito de carreteiros, como nas fotografias Sesteada, Riachinho, As cantigas do Vovô, Nhô João Deixa Disso, Rancho Theresópolis, Aguadeiro em Serviço, Aguadeira e Dois Philosophos-Riachinho, entre outras.
O tom humorístico se destaca no jogo com o título da imagem, como por exemplo, em Nhô João Deixa Disso, cuja expressão correspondente em alemão, no título bilíngue, é Späte Liebe, que significa "amor tardio", conforme comentado por Pinto da Rocha, jornalista da Gazeta do Comercio, por ocasião da Mostra Grupal de Artes, em 1903. Por meio de sua fala, podemos entrever os conceitos eurocêntricos que estavam disseminados e que, de certa forma, ficaram impregnados na atualidade, por um pensamento que tende a tornar invisível a contribuição da cultura negra, no Rio Grande do Sul e no Brasil.
Em suas imagens, a experimentação de uma poética fotográfica estava no foco, por mais que a poética estivesse fora de foco. Luzes, reflexos, águas, galhos e vegetação abundante reuniam-se na superfície das águas, em um estilo floo, esfumaçado, ao modo do pictorialismo praticado por membros dos fotoclubes, inspirados nas cenas impressionistas ou simbolistas de pintores estrangeiros. Atravessando a linguagem, Lunara vai mesclando paisagens e vistas, retratos e cenas, alemães, gaúchos e africanos, realizando quase uma transmutação de estilos e percepções na busca de uma expressão autoral. Aqui também caminhando no contrapelo de uma estética fotográfica que se apresentava cada vez mais popular, cheia de clichês.
As vistas de Porto Alegre de Lunara integraram-se no conjunto de obras da Bienal. Afinal, por ser uma mostra de arte contemporânea, faz jus em incluir fotografias, sem distinção de período histórico, assinalando a linguagem fotográfica como uma personagem principal na história da arte. O conjunto de imagens não deixa de "ritualizar", no sentido simbólico, um encontro entre culturas distintas que só coexistem na camada de significados próprios da fotografia. Ao pôr imagens lado a lado, seja da cultura negra ou da cultura alemã, Lunara faz desmoronar, ficcionalmente, as distâncias sociais presentes, o que nos remete ao problema contemporâneo da incorporação das diversidades de etnia e gênero.
Apagar os rastros da mise en scène, que evidencia o que já vai deixar de ser, é um sintoma da entrada de novos ares progressivos e modernizantes na cidadela colonial. Isso acaba acontecendo com a exibição cada vez mais constante de imagens, que procuram apresentar uma cidade que "aparenta" ser ou que se "dá a ver" com os mesmos padrões das metrópoles da Europa "civilizada", relegando à sombra da história as partes indesejadas da capital do estado do Rio Grande do Sul, estas, destinadas a serem ruínas.
No vídeo abaixo, faça um passeio virtual pela 11ª Bienal do Mercosul: