A enchente que atingiu o Rio Grande do Sul em maio não só paralisou temporariamente a agenda artística do Estado como prejudicou diretamente alguns espaços e projetos culturais, impossibilitando uma retomada imediata.
Passados mais de seis meses da tragédia climática, há quem ainda não tenha voltado plenamente à atividade. Diversos editais públicos focados na recuperação de profissionais do setor e de projetos afetados pela cheia permitiram, se não um retorno ao que era antes, ao menos um alívio após o sufoco.
A Secretaria da Cultura do Rio Grande do Sul (Sedac) informa que viabilizou aproximadamente R$ 260 milhões em editais, entre recursos próprios e descentralizados da União, incluindo iniciativas que não haviam sido criadas para amenizar os danos da enchente, mas que acabaram servindo para este propósito.
A Lei Paulo Gustavo (LPG), por exemplo, teve os pagamentos antecipados para maio para que os 324 projetos aprovados recebessem os recursos logo após a tragédia climática.
— Tínhamos até o final do ano para fazer os pagamentos da Lei Paulo Gustavo e antecipamos esses proventos para poder colocar dinheiro na mão dos trabalhadores da cultura. Além do mais, chamamos 27 projetos suplentes da LPG. Como o dinheiro da LPG ficou aplicado e rendendo, conseguimos repassar os rendimentos às iniciativas que estavam na suplência — explica a secretária de Cultura, Beatriz Araujo.
Além dos editais, houve investimento direto do governo do Rio Grande do Sul, por meio do Banrisul, para reformar instituições culturais que foram danificadas pela água, como o Museu de Arte do Rio Grande do Sul (Margs), na Praça da Alfândega, que teve todo o pavimento térreo alagado e somente no dia 6 de dezembro conseguiu reabrir as portas.
Segundo Beatriz, o aporte total feito pelo banco para recuperar estruturas físicas de diversos espaços culturais foi de R$ 16 milhões. Um balanço da Sedac aponta que ao menos 283 instituições sofreram algum tipo de estrago, especialmente museus, bibliotecas e casas de cultura.
Outros R$ 9 milhões foram destinados pelo Banrisul para editais culturais e ao Festival Movimenta Cena Sul, voltado ao apoio de trabalhadores das artes cênicas afetados direta ou indiretamente pela enchente. Quinze espetáculos de sete cidades foram apresentados nos espaços da Fundação Theatro São Pedro durante o mês de julho. A entrada foi gratuita.
— Foram cerca de 800 contratações de profissionais do teatro, da dança e do circo. Conseguimos colocar em torno de 5 mil espectadores naquele momento difícil, porque sabíamos que as pessoas também precisam de arte depois daquela tragédia — diz Beatriz.
Centro Municipal de Cultura já opera parcialmente
A retomada da cena cultural de Porto Alegre contou com apoio da esfera municipal. Uma das instituições mais ativas na agenda artística, o Centro Municipal de Cultura Lupicínio Rodrigues teve salas alagadas, incluindo o Teatro Renascença, o Atelier Livre Xico Stockinger e a Biblioteca Pública Municipal Josué Guimarães. Para a reforma, a prefeitura investiu aproximadamente R$ 3 milhões. O Centro, que já opera parcialmente, tem reabertura completa prevista para março de 2025.
A Secretaria Municipal de Cultura e Economia Criativa abriu, em outubro, o edital Recomeço, organizado com recursos federais provenientes da Política Nacional Aldir Blanc. Foram contempladas 50 entidades artísticas e culturais da Capital que sofreram danos físicos por causa da enchente. Cada uma recebeu R$ 20 mil.
— Só contemplamos os projetos que tiveram sua estrutura física impactada, como salas de ensaio, estúdios, companhias de teatro, pontos de cultura etc. Mais de 95% já foi pago. Não quisemos viver o que vivemos na pandemia, quando os artistas foram os primeiros a parar, lá em março de 2020, e só voltaram a pleno em 2022 e 2023 — diz Daniela Mazzilli, coordenadora da Cinemateca Capitólio e coordenadora das políticas públicas na Secretaria Municipal de Cultural.
Um dos contemplados com o edital municipal foi o Circo Bonaldo D'Italia, um dos mais tradicionais do Rio Grande do Sul. Durante a enchente, os artistas estavam instalados no bairro Mathias Velho, em Canoas, e quase tudo que usavam para os espetáculos ficou debaixo d'água: trailers, lonas e materiais artísticos. A gerente do circo, Vanessa Bonaldo, e os familiares passaram duas semanas em um abrigo e depois foram hospedados em casa de amigos.
Os prejuízos que a cheia causou nos equipamentos de trabalho do Circo Bonaldo chegaram a R$ 150 mil, sem contar os danos ao veículos. Além dos R$ 20 mil da Lei Aldir Blanc, eles conseguiram outros R$ 32 mil pela Funarte, do governo federal, garantidos ainda em 2023. Embora os recursos tenham chegado em boa hora, não são suficiente para a plena retomada.
— É um bom dinheiro, mas não cobre nem 50% dos prejuízos que tivemos. A lona que usávamos para o circo ficou debaixo d'água, apodreceu, mas ainda estamos usando a mesma, porque é o que temos. Agora, se não tivéssemos recebidos esses valores, a gente estava parado, quebrado mesmo — diz Vanessa.
Investimento de R$ 60 milhões
Da parte do governo federal, o Ministério da Cultura (Minc) informa que abriu diversas frentes para incentivar a retomada cultural no Rio Grande do Sul.
Durante visita a Porto Alegre no mês de julho, a ministra da Cultura, Margareth Menezes, anunciou R$ 60 milhões em investimentos.
Os aportes incluem R$ 4,5 milhões da Bolsa Funarte de Apoio às Ações Continuadas, que distribuiu R$ 30 mil para 150 coletivos voltarem a produzir e criar projetos culturais, e R$ 8,3 milhões do Prêmio Diversidade Cultural RS, que beneficiou 59 pontos de memória e de cultura, além de bibliotecas comunitárias e comunidades quilombolas atingidas pela enchente.
Maioria está conseguindo se articular, avalia representante do setor
Integrante do Sindicato de Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões do Rio Grande do Sul (Sated-RS) e presidente da Associação de Circo do RS, Consuelo Vallandro sentiu falta de um edital do governo do Estado voltado especificamente para colaborar com artistas atingidos pela enchente. Contudo, ela acredita que boa parte da classe conseguiu se reposicionar a partir do segundo semestre do ano, usufruindo das iniciativas que foram disponibilizadas.
— Senti falta de um edital do Estado que buscasse, de alguma forma, ajudar especificamente os grupos artísticos atingidos pela enchente. Ainda assim, acho que a maioria dos artistas que trabalham com espetáculos está conseguindo se articular. A gente conseguiu se virar com os editais que saíram. Claro, os grupos que perderam muita coisa, tipo o Oi Nóis Aqui Traveiz, vão levar anos, e talvez nunca recuperem tudo o que perderam —avalia.
A ausência de espaços onde se apresentar no segundo semestre foi um sufoco adicional à classe artística, diz Consuelo. Com o Teatro Renascença fechado para reformas e as demais salas recuperando a agenda que havia ficado paralisada no primeiro semestre, sobraram poucas alternativas a não ser alugar espaços que não são públicos.
— Cada grupo foi para um lado. Teve gente que alugou sala de clube e outras salas alternativas. Estamos esperando os editais de ocupação de espaços públicos para o primeiro semestre de 2025. Isso vai normalizar o fluxo de espetáculos — diz.
Em nota, a Sedac reforçou que uma série de ações foi posta em prática para atender à classe e garantir que não fosse a última a retornar às atividades, como aconteceu na pandemia. As ações detalhadas da pasta podem ser conferidas aqui.