Morador do sétimo andar de um edifício antigo no Centro Histórico de Porto Alegre, André Mazzeo, 56 anos, está se habituando a abrir as janelas do apartamento e enxergar elementos que destoam das tradicionais construções acinzentadas preenchendo o horizonte. Dois desenhos coloridos e em grandes proporções, à sua esquerda e à direita, começam a tomar forma nas laterais dos prédios vizinhos, no outro lado da Rua Jerônimo Coelho.
São murais sendo produzidos um de frente para o outro pelo Festival Olhe pra Cima, que desde 2021 vem espalhando arte pelas ruas de Porto Alegre. O foco são as empenas de edifícios do Centro Histórico e da Cidade Baixa cujas aparências estão se deteriorando.
— Está todo mundo muito feliz, porque essa revitalização visual é importante para o Centro. Todos têm a sensação de que o Centro é algo muito velho. Ver arte aqui é gratificante — diz Mazzeo, que cresceu na região.
Para que as laterais dos prédios sejam decoradas, os administradores dos condomínios precisam dar autorização para os artistas. Alguns moradores, inclusive, têm solicitado que o festival contemple os edifícios onde vivem. Com 11 intervenções realizadas em três anos e outras quatro que devem ser entregues até o fim de dezembro, incluindo as duas na Jerônimo Coelho, Vinicius Amorim, criador do Olhe pra Cima, diz que a vizinhança acaba se surpreendendo com o resultado das obras.
— Os moradores nunca imaginam que vai ficar em um nível tão bom. E quando enxergam o resultado, vemos pessoas comuns discutindo arte, dizendo que gostam mais desse ou daquele mural. Acho que estamos promovendo bastante reflexão. Temos conseguido mostrar a transformação urbana no Centro de Porto Alegre, e vários administradores de condomínios já colocaram seus prédios à disposição.
Financiado pela Lei de Incentivo à Cultura do Rio Grande do Sul (LIC-RS) e com as tintas doadas por patrocinadores, o Olhe pra Cima foi autorizado a captar R$ 348 mil para produzir os quatro murais neste ano. Todos os profissionais envolvidos estão pintando laterais de prédios pela primeira vez.
Movimento faz repensar a cidade
Artista visual que nunca havia feito uma obra fora do ambiente controlado do seu ateliê, Cacau Weimer, 31 anos, agora utiliza o andaime suspenso, também chamado de balancim, para deixar suas pinceladas na empena de um dos edifícios da Jerônimo Coelho. Faz isso sob a pressão do barulho dos carros cruzando a rua lá embaixo e dos olhares de pedestres que analisam sua obra antes de ter sido finalizada. Alguns até opinam.
— Às vezes, eu preciso descer para ver como está o meu trabalho lá da rua. E as pessoas já vêm conversar comigo para saber se sou eu mesma que estou pintando. É uma interação que eu ainda não tinha vivenciado — diz. — Quando falamos de arte urbana, falamos de impacto na cidade e nas pessoas. Esse tipo de arte é um convite para as pessoas pararem um pouco e refletirem. É um movimento importante para repensar a cidade e as construções públicas.
Conhecido por retratar a questão indígena em suas produções visuais, Xadalu está produzindo uma obra de 22m de altura por 18m de largura na lateral de um edifício no alto da Rua dos Andradas, esquina com a Senhor dos Passos, dentro do Olhe pra Cima.
Aguardando em pé em uma parada de ônibus, uma mulher de bolsa e salto alto tinha os olhos perdidos na imagem que ainda não havia sido completamente colorida. Cerca de 180 edifícios da Capital já foram mapeados pelo Olhe pra Cima como possíveis receptores de intervenções artísticas.
Murais dão sensação de pertencimento
O crescente movimento da arte urbana em Porto Alegre é visto com bons olhos pelo professor da Faculdade de Arquitetura da UFRGS Eber Marzulo, especialista em planejamento urbano. As pinturas em grandes proporções são tão marcantes que os edifícios onde estão projetadas acabam se integrando mais à cidade e dando às pessoas a sensação de que elas pertencem àquele lugar.
— Existe uma recuperação do espaço urbano que é importante, o que gera um sentimento aprazível em lugares que não eram aprazíveis. As pessoas começam a prestar mais atenção à paisagem urbana e, por consequência, os murais dão um sentimento maior de pertencimento. A experiência de estar na rua ganha outro sentido — reflete.
Por outro lado, o professor observa que há casos em que a arte urbana é promovida pelo mercado imobiliário em regiões mais abandonadas, tendo como resultado o processo de gentrificação, caracterizado pelo aumento do custo de vida nessas áreas e o consequente êxodo dos antigos moradores.
— É comum que a arte urbana promova uma movimentação em lugares onde não havia movimento. Com o passar do tempo, isso pode gerar um processo de valorização fundiária-imobiliária, porque atrai grupos sociais de maior renda — avalia.
Travessa Passarinho homenageia Mario Quintana
Iniciativa do poder público, a revitalização da Travessa Araújo Ribeiro, no Centro Histórico, que conecta a Rua Sete de Setembro à Siqueira Campos, transformou um beco escuro e sem vida em um espaço com murais coloridos, iluminação, câmeras de segurança e bancos.
Rebatizada de Travessa Passarinho, a viela amplia a experiência cultural do tradicional passeio pela Casa de Cultura Mario Quintana. O projeto foi concebido pelo programa Centro +, da Secretaria de Planejamento e Assuntos Estratégicos da prefeitura de Porto Alegre. Entre as pinturas no muro, que fazem referência ao poeta gaúcho, há trabalhos de artistas como Tio Trampo e Jotape Max. A partir de 2025, a passagem de carros deve ser proibida.
Projeto pinta casas em áreas que foram alagadas
Outros dois grandes murais recém- entregues à cidade embelezam esquinas onde o fluxo de carros é intenso: na Osvaldo Aranha com a Ramiro Barcelos e na Rua dos Andradas com a Bento Martins.
Ambos são de autoria da artista Mana Bernardes e foram idealizados pelo Paredes com Propósito. Contudo, o foco desse projeto é inteiramente diferente.
Concebido por artistas voluntários que uniram forças após a enchente, a finalidade é pintar fachadas de casas em bairros severamente alagados. Cerca de 250 residências foram contempladas até o momento, incluindo lares do Quilombo do Areal, na Luiz Garanha, entre os bairros Menino Deus e Cidade Baixa. Todas as tintas são doadas por empresas patrocinadoras.
Foi na estreita viela sem saída conhecida como um dos territórios negros de Porto Alegre, onde vivem cerca de 70 famílias, que Jotape Pax, artista e idealizador do Paredes com Propósito, ouviu uma moradora fazendo uma declaração difícil de esquecer:
— Fomos perguntar para uma senhora que cor que ela queria na sua fachada. Ela ficou sem reação. "Eu tenho 70 anos e nunca ninguém perguntou a cor que eu queria na minha casa. Era sempre a cor que tinha", ela disse. E acabou escolhendo o roxo. Na enchente, as pessoas perderam o poder de escolha, porque vivem com roupas doadas, comidas doadas. Foi bem emocionante para nós. A gente vai além da tinta: damos um acolhimento emocional — diz o artista.
O objetivo do Paredes com Propósito é chegar a 2 mil casas pintadas até o final de 2025, incluindo residências no interior do Rio Grande do Sul que tenham sido atingidas pela enchente ou localizadas em áreas de risco. Jotape afirma que dar cor a lares de pessoas em situação de vulnerabilidade social também é uma forma de modificar a cidade e fazer arte urbana.
— Mesmo que a casa tenha a fachada de uma cor só, o conjunto dessas residências forma um contexto de arte urbana. E é um projeto aberto, que pode ser replicado por qualquer grupo de pessoas. Não temos apego. Gostaríamos que mais pessoas fizessem isso.