Em meio às árvores, ao verde e ao silêncio do Morro do Sabiá, no bairro Pedra Redonda, uma antiga capela abriga uma obra de arte esquecida no tempo. Trata-se de uma pintura mural de Aldo Locatelli, datada de 1953 e situada dentro da Capela de Nossa Senhora, pertencente ao Colégio Anchieta.
Dedicada a Nossa Senhora, a obra em cal foi executada na superfície da parede, onde fica localizado o altar. Representa a mãe de Jesus Cristo em pé, descalça e coberta por um manto multicolorido. A imagem está circundada por 10 pessoas, sendo uma das figuras o próprio filho do pintor, Roberto Locatelli, na época com três anos de idade.
Além disso, um jovem do grupo segura dois livros vermelhos. Também é possível ver flores como margaridas, lírios e possíveis astromélias no desenho. A pintura é reconhecida e tombada como patrimônio histórico pelo município de Porto Alegre. E agora será restaurada, enquanto a capela que a abriga, em meio à mata nativa, passará por melhorias.
— Essa pintura do Locatelli foi feita em pouquíssimo tempo e representa Nossa Senhora. Ela não tem título, como de Lourdes, da Assunção, da Conceição. É simplesmente terrena — contextualiza o arquiteto da equipe responsável pela restauração, Lucas Volpatto, dizendo que a santa estaria rodeada por alunos anchietanos.
A iniciativa da restauração da obra do ítalo-brasileiro Locatelli foi contemplada no final de 2024 pela Lei de Incentivo à Cultura, mais conhecida como Lei Rouanet (Lei nº 8.313/91).
A capela, que não é tombada, nem inventariada, passará por reforma. Em especial o telhado da estrutura, que apresenta comprometimentos e será a primeira parte a sofrer intervenções. O Colégio Anchieta investe no projeto e ajudará no que não estiver contemplado pela legislação.
— Esse Locatelli realmente precisa de restauro. Está sendo montada uma campanha para começar a fazer a intervenção de consolidação e restauração dessa pintura mural e também de melhorias no telhado da estrutura do edifício — diz Volpatto.
O tempo estimado de execução da obra será de oito a 10 meses. O começo do trabalho tem previsão de começar entre março ou abril, mas a data ainda depende de captação de recursos. O projeto total está orçado em R$ 820 mil, sendo que a restauração da pintura custará R$ 63 mil.
História da pintura na capela
A história da pintura remonta aos tempos do padre Henrique Pauquet. Em 1950, o religioso idealizou uma área próxima ao Guaíba, na zona sul de Porto Alegre, para construir um espaço de lazer destinado a alunos, familiares, ex-alunos, jesuítas e funcionários do Colégio Anchieta.
A ideia era recriar o ambiente bem-sucedido da colônia de férias em Vila Oliva, em Caxias do Sul. Dessa maneira, a instituição de ensino adquiriu uma área de cerca de seis hectares no morro e começou as obras da casa da juventude no mesmo ano. Não se sabe a autoria do projeto para a construção da Capela de Nossa Senhora, que conta com belos vitrais.
Para ser sincero, eu lamento que a pintura não possa estar aberta à visitação pública, que esteja fechada para estudantes e pessoas ligadas à arte que queiram desenvolver sua capacidade e técnica
ROBERTO LOCATELLI
Filho do pintor
O padre teria se encontrado com o pintor Aldo Locatelli em algum momento dos anos 1950. Comenta-se que o encontro teria acontecido ao acaso em pleno Centro Histórico. Foi feito o convite para o pintor criar uma obra mural na parte interna da capela, o que efetivou-se em uma tarde de 1953.
— A capela, que abriga a obra espetacular de Aldo Locatelli, com a imagem de Nossa Senhora rodeada por crianças, conecta-se profundamente com a Pedagogia Inaciana (metodologia que visa a formação integral do indivíduo, não só na parte acadêmica como também no desenvolvimento humano e social), refletindo a metodologia e o espírito humanista de ensinar a pensar com excelência — reflete o diretor acadêmico do Colégio Anchieta, professor Dário Schneider.
Nunca restaurada antes, a pintura em arco ogival (gótico) tem cerca de 1,50 metro de largura por 2m de altura. Atualmente, apresenta degradação da camada pictórica por desbotamento e descolamento, concheamento da superfície, fissuras e lacunas na camada pictórica. A causa apontada por especialistas seria a presença de umidade.
Filho lamenta que pintura não possa ser apreciada pelo público
O engenheiro aposentado Roberto Locatelli, 74 anos, é o filho retratado no mural da Capela de Nossa Senhora, no Morro do Sabiá. Na época da pintura, ele tinha três anos e não recorda do momento em que serviu como modelo.
— Eu nunca fui nessa capela. Já vi a obra, mas não pessoalmente no local — comenta, por telefone, de São Paulo, onde trabalha atualmente no mercado imobiliário.
Roberto acredita que a pintura de seu pai deveria estar à disposição da visitação pública, e não ficar restrita apenas a pessoas vinculadas ao Colégio Anchieta.
— Para ser sincero, eu lamento que a pintura não possa estar aberta à visitação pública, que esteja fechada para estudantes e pessoas ligadas à arte que queiram desenvolver sua capacidade e técnica — afirma.
O filho chega a dizer que não adianta ter uma obra de arte dentro de casa, apenas para consumo interno. O ideal seria compartilhar a pintura com o público.
— É uma obra privada, sim, mas é um patrimônio que ele (Aldo, o pai) deixou não só para o Colégio Anchieta, mas para a cidade de Porto Alegre. Então, deveria ser estimulada a visitação de colégios, de estudantes de arte, para conhecer mais sobre a arte dele. Não só apenas aquelas obras que estão expostas publicamente — observa.
A advogada aposentada Cristiana Locatelli, 72, também não tem maiores lembranças da pintura. A filha mais nova de Locatelli vive desde 1979 em Rio Branco, capital do Acre.
— Fui só uma vez na capela, quando eu ainda morava em Porto Alegre. Devia ter meus 24 anos, mais ou menos — estima.
Cristiana confirma que era uma característica do pai retratar ela, o irmão e outros familiares em alguns trabalhos. E ela não esconde o orgulho pelo legado do pintor.
— Quando eu me deparo com as obras dele, principalmente essas monumentais, como a São Pelegrino, que é toda pintada por ele, fico espantada de ter sido filha de um gênio. Porque o meu pai era um gênio para conseguir passar para a tela o realismo que ele conseguia passar e tocar a gente. É uma coisa que me deixa muito impactada, só um gênio pode fazer isso. É um orgulho tremendo — conclui.
Quem foi Locatelli
O pintor e muralista Aldo Locatelli nasceu em Bérgamo, na Itália, em 1915. Em 1948 chegou ao Rio Grande do Sul para produzir afrescos na Catedral de Pelotas. O ítalo-brasileiro foi um dos fundadores da Escola de Belas Artes do município da zona sul, o que ocorreu no ano seguinte.
Em 1950, fixou residência em Porto Alegre. Começou a lecionar na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). No ano seguinte, começou a trabalhar na obra da Igreja São Pelegrino, em Caxias do Sul. Foi lá que deixou registrado seu maior legado, a Via Sacra.
Na Capital, pintou o painel do antigo aeroporto Salgado Filho, afrescos dos salões Alberto Pasqualini e Negrinho do Pastoreio, do Palácio Piratini, e na Reitoria da UFRGS. Locatelli decorou várias igrejas e espaços públicos que se tornaram patrimônios importantes do Estado.
Sobre a obra específica do aeroporto, chamada A Conquista do Espaço, o pintor teve o auxílio de outros dois artistas italianos, Emílio Sessa e Attílio Pisoni. Com 50 metros quadrados e finalizada em 1953, a pintura faz referências à história da aeronáutica. Locatelli morreu em 1962, quando tinha apenas 47 anos.