Eu era criança quando Victor Jara foi preso, torturado e morto, nos primeiros dias depois do golpe militar que derrubou o presidente chileno Salvador Allende, em 1973. Ouviria falar dele apenas alguns anos mais tarde, adolescente ainda, quando alguém me mostrou, comovido, Te Recuerdo Amanda, sua música mais conhecida. A bonita e triste canção de amor nasceu para mim junto com a história trágica do seu autor – uma espécie de Chico Buarque chileno, me disseram, preso com outros professores e estudantes durante um protesto em uma universidade no dia seguinte ao golpe.
Enquanto eu ouvia a canção pela primeira vez, me contaram que o cantor havia sido morto em um estádio improvisado como cárcere. E mais: suas mãos foram cortadas para que ele soubesse que jamais voltaria a tocar violão. Essa imagem difícil de esquecer – um artista com as mãos amputadas, sangrando sob o olhar sádico dos seus algozes – é a única parte exagerada dessa tragédia latino-americana. Jara não perdeu as mãos, mas foi espancado e atingido por pelo menos 23 tiros antes que seu corpo fosse descartado em um terreno baldio.
Em meio ao terror da tortura, porém, o poeta teve tempo de escrever o poema-reportagem que ainda hoje é um dos mais pungentes relatos, no calor da hora, do horror da violência de Estado: "Somos cinco mil aquí/ en esta pequeña parte de la ciudad/ (…) Seis de los nuestros se perdieron/ en el espacio de las estrellas./ Uno muerto, un golpeado como jamás creí/ se podría golpear a un ser humano./ Los otros cuatro quisieron quitarse/ todos los temores, / uno saltando al vacío,/ otro golpeándose la cabeza contra un muro/ pero todos con la mirada fija en la muerte./ Qué espanto produce el rostro del fascismo".
Victor Jara tornou-se o mártir mais conhecido da truculenta ditadura chilena, que matou mais de 40 mil pessoas em 17 anos. Um símbolo do que a cegueira ideológica é capaz de produzir quando tem acesso a armas e se coloca acima do bem, do mal e da justiça. E era, até bem pouco tempo, também um símbolo de impunidade. Não mais. Na semana que passou, oito ex-integrantes do exército chileno foram condenados pela morte do cantor. Hugo Sanchez Marmonti, Raul Jofre González, Edwin Dimter Bianchi, Nelson Haase Mazzei, Ernesto Bethke Wulf, Juan Jara Quintana, Hernán Chacon Soto e Patricio Vásquez Donoso foram condenados a 15 anos de prisão.
Victor Jara é um símbolo do que a cegueira ideológica é capaz de produzir quando tem acesso a armas e se coloca acima do bem, do mal e da justiça.
Por uma dessas coincidências que adornam o acaso com novos sentidos, na mesma semana em que os militares chilenos foram condenados, o Brasil levou um puxão de orelhas da Corte Interamericana de Direitos Humanos. O Estado brasileiro foi condenado pela falta de investigação, julgamento e punição dos responsáveis pela morte do jornalista Vladimir Herzog. Em 24 de outubro de 1975, Vlado, então funcionário da TV Cultura, apresentou-se voluntariamente para depor no DOI/CODI de São Paulo. Não teve tempo de escrever um poema, mas sua imagem, morto, ajudou a sepultar a ditadura brasileira.
Com tantos elementos em comum até aqui, os destinos de Vlado e Jara tomaram caminhos distintos nos últimos dias. A partir de agora, Victor Jara passa a simbolizar a Justiça que tardou, mas não falhou, na história recente do nosso continente. A memória de Vlado, por sua vez, permanece à espera do acerto de contas com o passado que pode impedir que a nossa história, um dia, decida reencarnar como assombração.